1.
Terei de continuar a viver sem as máquinas superinteligentes,
prometidas para 2030, dotadas de consciência reflexiva,
multiplicadoras do eu pessoal, tantas vezes quantas se desejar e com
a imortalidade à vista. É possível que venham a resolver, de forma
científica e técnica, todas as questões existenciais, imanentes ou
transcendentes, sem restos das ingenuidades do passado. Alguns
perguntam com malícias tradicionais o que será namorar e casar com
um computador, pedir-lhe para procurar saber se Deus existe ou não,
se haverá vida (e que vida) depois da morte, se a oração e as
liturgias religiosas terão algum sentido.
Esse género de perguntas pertence a ignorantes do admirável mundo
novo inscrito na dinâmica das novas tecnologias que dispensa
tanto as velhas utopias humanistas como o património artístico e
religioso dos nossos antepassados. Essas máquinas prodigiosas vão
superar os voos poéticos do velho Apocalipse: vi então um novo céu e
uma nova terra, pois o primeiro céu e a primeira terra foram-se e o
mar já não existe. Nunca mais haverá dor, lágrimas, morte, luto,
clamor. As coisas antigas desapareceram. Não haverá mais noite e o
sol também não será preciso. Vou fazer novas todas as coisas
(Ap. 21-22).
Este Livro prodigioso parece que servia de encorajamento às igrejas
cristãs perseguidas. A desgraça não tem de ser eterna, eterno é o
misterioso Deus de Amor. Quando não se sabe nada do futuro, ou se
aposta em cálculos que saem sempre errados ou resta-nos a imaginação
delirante. Quando é poética, não se lhe pedem responsabilidades. É
verdadeira por ser como é. Quando pretende ser científica,
tecnicamente garantida, é preciso esperar para ver e não sobra tempo
para tanto.
2.
É próprio da celebração litúrgica enraizar-se no passado,
transformar o presente e abrir o futuro das comunidades cristãs. A
encenação litúrgica, como teofania e antropologia, ou vive da
convocação musical de todas as artes ou não consegue reunir o céu e
a terra na regeneração transfiguradora do ser humano. É na luz da
palavra poética e na energia da acção simbólica do agir ritual que
acontece a graça de Deus. Quando a celebração se degrada, fica o
ritualismo vazio e o fastio litúrgico. Quando a prática religiosa
deixa de ser considerada uma obrigação, sob pena de pecado mortal e
suas consequências, já nada consegue vencer o aborrecimento, a
prática religiosa entra em crise, surge o abandono, a recessão
litúrgica. Não se vence com a obsessão ritual. Seria procurar a cura
na doença.
Outro foi o caminho escolhido pela Faculdade de Teologia da UCP e o
Patriarcado de Lisboa, que organizaram as jornadas Liturgia, Arte
e Arquitectura nos 50 anos do Concílio do Vaticano II, a 15 e 16
deste mês. O tema é abrangente e com razão, pois a liturgia exige o
contributo de todas as artes da palavra e da encenação ritual, num
tempo e num lugar concreto, como celebração de uma comunidade. Não
se trata de preservar o património religioso nem de encenação de
espectáculos. O ponto de partida não pode ser um desígnio abstracto
de construção de uma comunidade com gente sem história, sem desejos
e sem projectos. É preciso partir de grupos de pessoas cristãs, em
processo de conversão, com proveniências diferenciadas, que vão
adquirindo consciência de que são elas a Igreja em construção.
O primeiro alicerce é o da escuta recíproca. A primeira qualidade do
ministro ordenado, para ajudar a comunidade, é a capacidade de
escutar e promover as formas várias de encontro entre todos os
membros desse corpo. A pressa e o adiamento das decisões não ajudam
esse processo vital. É a partir daqui que tem sentido pensar no
espaço, na arquitectura e nas artes da celebração da comunidade.
Pensar e projectar, com a participação de todos, não atrasa a obra
porque esse processo já está a construir o mais importante. Não é
tempo perdido.
3.
Poder-se-á objectar que um método desses vai dificultar a renovação
litúrgica, a participação criativa de artistas, arquitectos e
músicos.
Isso só pode acontecer quando se procura espaço para a igreja sem
haver Igreja. É na construção de uma comunidade plural,
culturalmente marcada, que, de forma dialogada, se podem manifestar
as formas artísticas em que ela se reconheça, sabendo que pertence a
várias gerações.
Dito isto, a pertinência da temática do encontro não podia ser mais
ajustada. A cinquenta anos do Vaticano II, já é possível avaliar a
importância da reforma proposta pelo Concílio, tendo em conta a sua
preparação, mediante o movimento litúrgico de vários países e
tendências, ao longo dos anos.
Continuaremos no próximo Domingo.
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