Bento Domingues - Triplo II: O blog do TriploV - Revista TriploV de Artes, Religiões e Ciências
 
 
 

1. Um filósofo e matemático, Bertrand Russel (1872-1970), teria afirmado que “a matemática é a única ciência exacta que nunca se sabe do que se está a falar nem se aquilo que se diz é verdadeiro”. Um amigo, lendo, no Público, essa transcrição, sentiu-se iluminado. Ao escolher um matemático para ministro, o responsável pelo executivo fez uma opção política que poderá salvar a acção governativa em todas as circunstâncias: não interessa perguntar se aquilo que o governo diz é ou não verdadeiro, se está certo ou errado, nem importa perceber do que ele está a falar.

BENTO DOMINGUES, op

Que podem os que não podem?

Bento Domingues . Frade da Ordem dos Dominicanos, teólogo, professor, escritor

 
 

Não adiantou dizer a este iluminado pela “Escrita na Pedra” que essa questão não é de agora, nem exclusiva da matemática. A Jesus de Nazaré, no processo político em que foi condenado, não lhe valeu de nada a forma enfática como enfrentou o governador da Judeia: “nasci e vim ao mundo para dar testemunho da verdade; quem é da verdade, escuta a minha voz”. Pôncio Pilatos não apreciou aquela retórica e adiantou-lhe uma interrogação carregada de cepticismo: “ O que é a verdade?” (Cf. Jo, 28-40).

A distorção da política transformou-a na encenação de um teatro oficial. Tem figuras principais e secundárias. A maioria faz parte do coro. O que interessa é a boa imagem. Com o ruído dos noticiários, dos debates televisivos, radiofónicos, das transmissões da Assembleia da República, do recurso às novas tecnologias da informação, antes, durante e depois das eleições, acaba-se por não se saber em quem acreditar.

É certo que, numa democracia representativa, a igualdade é garantida pela lei, nas urnas e nem sempre são urnas funerárias. B. Pascal, que tinha um sentido muito agudo do significado do poder e da impotência da palavra verdadeira na ordem social, dizia: “pode-se fazer crer na verdade, mostrando-a; mas não basta mostrar a injustiça dos poderosos para os corrigir”.

2. Na história das religiões, e não só, surgiram sempre algumas pessoas – por vezes grupos -  que acreditavam no poder da palavra para denunciar caminhos, nos campos social, político, religioso e apontar novos rumos. A essas pessoas foi dado o nome de profetas. Pondo de parte muitos outros aspectos desse fenómeno, destaco apenas isto: o profeta é uma pessoa lúcida, que vê o que outros não querem ver e tem a coragem de denunciar o que outros gostariam de ocultar.

O Cristianismo começou com um profeta, Jesus de Nazaré. Acerca da história do profetismo, Ele próprio é muito irónico: “ai de vós que edificais os túmulos dos profetas, enquanto foram os vossos pais que os mataram. Assim, vós sois testemunhas e aprovais os actos dos vossos pais: eles mataram e vós edificais.” (Lc 11, 47-48)

Em todas as épocas, surgiram cristãos que não pactuaram com o esquecimento do Evangelho, a decadência e a corrupção na Igreja. Foram essas pessoas e grupos que levaram à prática a ideia de uma Igreja sempre a reformar. Os que souberam assumir os novos desafios culturais e sociais constituem a verdadeira herança da Igreja e a possibilidade de tornar o futuro diferente. O século XX, marcado por duas guerras mundiais, não foi apenas, nem sobretudo, o das traições das Igrejas. Poderíamos nomear pessoas, grupos e movimentos proféticos que fizeram do século XX uma grande viragem do catolicismo. O acontecimento que o aprofundou, alargou e relançou foi o Vaticano II. Costuma-se dizer que é o fruto de uma decisão do Papa João XXIII. É verdade, mas o que há de novo nessa decisão é a vontade de envolver todas as pessoas de boa vontade, cristãos e não cristãos, num processo de reconciliação mundial, num momento de confronto nuclear. É evidente que o papa, directamente, só podia envolver os católicos. Criou um clima espiritual que os membros de outras igrejas cristãs, de outras religiões e dos sem qualquer religião sentiram que aquele momento era de todos e para todos. Hoje, muitos se perguntam como foi possível e, também, por que razão se deixou cair o maior momento de lucidez humana e cristã?

3. O que João XXIII tentou fazer redescobrir é que o autoritarismo não serve para nada, nem na sociedade, nem na Igreja. Sem liberdade não há humanidade nem religiosidade autênticas. A Voz Portucalense publicou um pequeno texto de Sto Ambrósio (340 - 397) que é de recordar aqui: «Não é digno de um imperador interditar a liberdade de palavra e não é digno de um sacerdote não dizer aquilo que pensa. Em vós, imperadores, não há nada que seja mais democrático e amável que apreciar a liberdade, até mesmo naqueles que vos devem obediência militar. É esta, precisamente, a diferença entre os bons e os maus príncipes: os bons amam a liberdade, os maus a escravidão. Ao mesmo tempo, para o sacerdote não há nada mais perigoso perante Deus e indigno perante os homens do que não dizer livremente aquilo que pensa.»

Ao profeta só resta o poder da palavra. É o poder dos sem poder. Aí, o perigo do seu contágio. Na missa de hoje, conta-se um caso exemplar. O sacerdote de Betel, santuário real, não suportou a rudeza de Amós e mandou-o ir ganhar a vida para outro lado. Amós não se calou: "Eu não era profeta nem filho de profeta. Era pastor de gado e cultivava sicómoros. Foi o Senhor que me disse: Vai profetizar ao meu povo de Israel."

O profeta não existe para defender falsos interesses estabelecidos, na sociedade ou na Igreja. Isso é desagradável.

 
 

Público, 15 de julho de 2012

 

   
   
 

http://www.we-are-church.org/pt/

   
   
   
Bibliografia Científica - Botânica - Cibercultura/Ciberarte - Colóquios - Espírito - Ficção - Gnose - Herpetologia - História - Instituto S.Tomás De Aquino (ISTA)
Letras - Links - Naturalismo - Naturarte - Normas - Ornitologia - Poesia - Surrealismo - Teatro - Venda das Raparigas - Viagens-Lugares - Zoo_Ilógico

 

 

 

 

Magno Urbano - iPhone/iPad Applications