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Não adiantou dizer a este iluminado pela “Escrita na Pedra” que essa
questão não é de agora, nem exclusiva da matemática. A Jesus de
Nazaré, no processo político em que foi condenado, não lhe valeu de
nada a forma enfática como enfrentou o governador da Judeia: “nasci
e vim ao mundo para dar testemunho da verdade; quem é da verdade,
escuta a minha voz”. Pôncio Pilatos não apreciou aquela retórica e
adiantou-lhe uma interrogação carregada de cepticismo: “ O que é a
verdade?” (Cf. Jo, 28-40).
A distorção da política transformou-a na encenação de um teatro
oficial. Tem figuras principais e secundárias. A maioria faz parte
do coro. O que interessa é a boa imagem. Com o ruído dos
noticiários, dos debates televisivos, radiofónicos, das transmissões
da Assembleia da República, do recurso às novas tecnologias da
informação, antes, durante e depois das eleições, acaba-se por não
se saber em quem acreditar.
É certo que, numa democracia representativa, a igualdade é garantida
pela lei, nas urnas e nem sempre são urnas funerárias. B. Pascal,
que tinha um sentido muito agudo do significado do poder e da
impotência da palavra verdadeira na ordem social, dizia: “pode-se
fazer crer na verdade, mostrando-a; mas não basta mostrar a
injustiça dos poderosos para os corrigir”.
2.
Na história das religiões, e não só, surgiram sempre algumas pessoas
– por vezes grupos - que acreditavam no poder da palavra para
denunciar caminhos, nos campos social, político, religioso e apontar
novos rumos. A essas pessoas foi dado o nome de profetas. Pondo de
parte muitos outros aspectos desse fenómeno, destaco apenas isto: o
profeta é uma pessoa lúcida, que vê o que outros não querem ver e
tem a coragem de denunciar o que outros gostariam de ocultar.
O Cristianismo começou com um profeta, Jesus de Nazaré. Acerca da
história do profetismo, Ele próprio é muito irónico: “ai de vós que
edificais os túmulos dos profetas, enquanto foram os vossos pais que
os mataram. Assim, vós sois testemunhas e aprovais os actos dos
vossos pais: eles mataram e vós edificais.” (Lc 11, 47-48)
Em todas as épocas, surgiram cristãos que não pactuaram com o
esquecimento do Evangelho, a decadência e a corrupção na Igreja.
Foram essas pessoas e grupos que levaram à prática a ideia de uma
Igreja sempre a reformar. Os que souberam assumir os novos desafios
culturais e sociais constituem a verdadeira herança da Igreja e a
possibilidade de tornar o futuro diferente. O século XX, marcado por
duas guerras mundiais, não foi apenas, nem sobretudo, o das traições
das Igrejas. Poderíamos nomear pessoas, grupos e movimentos
proféticos que fizeram do século XX uma grande viragem do
catolicismo. O acontecimento que o aprofundou, alargou e relançou
foi o Vaticano II. Costuma-se dizer que é o fruto de uma decisão do
Papa João XXIII. É verdade, mas o que há de novo nessa decisão é a
vontade de envolver todas as pessoas de boa vontade, cristãos e não
cristãos, num processo de reconciliação mundial, num momento de
confronto nuclear. É evidente que o papa, directamente, só podia
envolver os católicos. Criou um clima espiritual que os membros de
outras igrejas cristãs, de outras religiões e dos sem qualquer
religião sentiram que aquele momento era de todos e para todos.
Hoje, muitos se perguntam como foi possível e, também, por que razão
se deixou cair o maior momento de lucidez humana e cristã?
3.
O que João XXIII tentou fazer redescobrir é que o autoritarismo não
serve para nada, nem na sociedade, nem na Igreja. Sem liberdade não
há humanidade nem religiosidade autênticas. A Voz Portucalense
publicou um pequeno texto de Sto Ambrósio (340 - 397) que é de
recordar aqui: «Não é digno de um imperador interditar a liberdade
de palavra e não é digno de um sacerdote não dizer aquilo que pensa.
Em vós, imperadores, não há nada que seja mais democrático e amável
que apreciar a liberdade, até mesmo naqueles que vos devem
obediência militar. É esta, precisamente, a diferença entre os bons
e os maus príncipes: os bons amam a liberdade, os maus a escravidão.
Ao mesmo tempo, para o sacerdote não há nada mais perigoso perante
Deus e indigno perante os homens do que não dizer livremente aquilo
que pensa.»
Ao profeta só resta o poder da palavra. É o poder dos sem poder. Aí,
o perigo do seu contágio. Na missa de hoje, conta-se um caso
exemplar. O sacerdote de Betel, santuário real, não suportou a
rudeza de Amós e mandou-o ir ganhar a vida para outro lado. Amós não
se calou: "Eu não era profeta nem filho de profeta. Era pastor de
gado e cultivava sicómoros. Foi o Senhor que me disse: Vai
profetizar ao meu povo de Israel."
O profeta não existe para defender falsos interesses estabelecidos,
na sociedade ou na Igreja. Isso é desagradável.
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