Bento Domingues - Triplo II: O blog do TriploV - Revista TriploV de Artes, Religiões e Ciências
 
 
 

1. A normalização e a fraca qualidade da leitura dos textos da Bíblia na Eucaristia acabam por neutralizar a surpresa e o impacto da sua novidade. Mas perdido o desafio da Palavra, a Missa pode tornar-se, para quem não aprecia a comunicação à mesa, um convencional pronto a servir.

Optar por essa prática é esquecer ou não ter feito a descoberta da natureza da celebração dos sacramentos enquanto acções simbólicas da graça de Cristo nas acções de uma comunidade em processo de transformação pascal. Entra-se numa celebração cristã para que o nosso mundo interior seja refeito, reconstruído, para renascer para um outro desejo de viver e lutar, de transfiguração do mundo.

BENTO DOMINGUES, op

Os diabos da Quaresma

Bento Domingues . Frade da Ordem dos Dominicanos, teólogo, professor, escritor

 

 

As celebrações sacramentais desenvolvem-se no âmbito da eficácia simbólica, num equilíbrio entre o emocional e o cerimonial. Não vive só das artes de falar, ouvir, ver e responder. Implica as linguagens do sentir, do tocar e do saborear. Sem capacidade humana de sugerir o acontecimento divino, alterando a sua significação imediata, perdem a sua qualidade sacramental de imprimir e exprimir a divina loucura da fé, da esperança e da caridade. Sem energia simbólica, a função performativa da linguagem resvala para o ritual supersticioso ou para o moralismo do dever pelo dever.

Se a liturgia fosse algo impessoal, tanto valia uma celebração de qualidade como uma desleixada. Se a Eucaristia fosse apenas um acontecimento divino, não dependeria em nada da qualidade evocadora e provocadora dos textos e dos gestos da assembleia, do padre, da homilia. A própria metáfora, Palavra de Deus, acontece, como divina, na linguagem das diversas culturas.

Toda a celebração, especialmente as leituras, precisa de interpretação, isto é, de que se faça a ponte entre “aquele tempo” e o nosso tempo. Há uma distância temporal e cultural de milhares de anos. É preciso mostrar como um acontecimento daquele tempo tem recursos para atingir todos os tempos e lugares, mas na cultura dos novos tempos e lugares.

2. A necessidade da interpretação, ou hermenêutica, sente-se logo ao começar a Quaresma. Não me estou a referir, de forma especial, à simbólica dos 40 dias, à importância do jejum, da esmola, da oração e da mudança de cor dos paramentos. Na quarta-feira de cinzas, os textos têm o cuidado em denunciar uma penitência hipócrita dos gestos e atitudes rituais que esquecem a prática da justiça.

O que vem baralhar tudo é o demónio, ou o diabo, que entra logo de serviço no primeiro Domingo. A narrativa das tentações de Cristo pode ser mais breve ou mais longa. Depende dos autores. Referem-se todas, porém, à iniciativa diabólica de contrariar o projecto de Jesus, procurando convertê-lo à esperança messiânica dos seus contemporâneos. Jesus ia intervir num país pobre, ocupado pelo Império Romano e dominado pela religião.

Tentação diabólica significa solicitação para o caminho errado. Com a palavra demónio, ou diabo, não se diz, apenas, a figura do mal, mas aquela que procura atrair os outros para o mau caminho. Neste caso, essa personagem conhece muito bem as esperanças messiânicas mais divulgadas nas populações. Se Jesus pretende ter sucesso, não as pode contrariar. Ele vai apresentar a Jesus os encargos de um verdadeiro messias: resolver os problemas económicos e políticos mais urgentes, com a espectacularidade religiosa própria de um Deus omnipotente. O diabo até parece raciocinar bem: defende os interesses de Deus, do povo e propõe a Jesus mostrar o que vale. Há só um inconveniente: engana-se acerca de Deus, engana-se acerca dos interesses mais profundos do povo e acerca do caminho que Jesus quer trilhar. 

3. A Missa de hoje também não começa bem. O texto arqui-conhecido e diabolicamente interpretado do Génesis (22, 1-18) apresenta um Deus – como sendo o verdadeiro Deus - que vai pôr à prova a obediência incondicional de Abraão, o pai dos crentes, mediante a morte do seu único filho.

A narrativa não pode ser mais bela, mais dramática, mais cruel. Tem motivado textos sublimes. Esquece-se, porém, que é preciso romper com essa homenagem a um Deus sanguinário e a um Abraão enlouquecido. A arte do texto diz uma coisa para dizer precisamente o seu contrário: num contexto de divindades que exigiam os sacrifícios humanos, como acto supremo da religião, aparece, no final da história, um Deus que impede Abraão de fazer o que os deuses propunham, a morte do seu filho. É o resgate do absurdo. Se a divindade quer sacrifícios, que fique pelos correntes holocaustos de animais, embora pouco apreciados pelos profetas.

Do belíssimo capítulo VIII da Carta aos Romanos seleccionaram, para hoje, os versículos mais monstruosos: Deus não poupou o seu próprio Filho mas O entregou à morte por todos nós. Quem não perceber que se trata de uma linguagem abrasada pela retórica, ficará com uma ideia de Deus que nunca poderia passar pela cabeça de S. Paulo.

O Evangelho de S. Marcos (9,2-10) vem transfigurar tudo por uma voz do Céu que só sabe dizer que esse Jesus é o Amado e nele o mundo todo.

 
 

Público, 6 de março de 2012

 

   
   
 
   
   
 

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