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As celebrações sacramentais desenvolvem-se no âmbito da eficácia
simbólica, num equilíbrio entre o emocional e o cerimonial. Não vive
só das artes de falar, ouvir, ver e responder. Implica as linguagens
do sentir, do tocar e do saborear. Sem capacidade humana de sugerir
o acontecimento divino, alterando a sua significação imediata,
perdem a sua qualidade sacramental de imprimir e exprimir a divina
loucura da fé, da esperança e da caridade. Sem energia simbólica, a
função performativa da linguagem resvala para o ritual supersticioso
ou para o moralismo do dever pelo dever.
Se a liturgia fosse algo impessoal, tanto valia uma celebração de
qualidade como uma desleixada. Se a Eucaristia fosse apenas um
acontecimento divino, não dependeria em nada da qualidade evocadora
e provocadora dos textos e dos gestos da assembleia, do padre, da
homilia. A própria metáfora, Palavra de Deus, acontece, como divina,
na linguagem das diversas culturas.
Toda a celebração, especialmente as leituras, precisa de
interpretação, isto é, de que se faça a ponte entre “aquele tempo” e
o nosso tempo. Há uma distância temporal e cultural de milhares de
anos. É preciso mostrar como um acontecimento daquele tempo tem
recursos para atingir todos os tempos e lugares, mas na cultura dos
novos tempos e lugares.
2.
A necessidade da interpretação, ou hermenêutica, sente-se logo ao
começar a Quaresma. Não me estou a referir, de forma especial, à
simbólica dos 40 dias, à importância do jejum, da esmola, da oração
e da mudança de cor dos paramentos. Na quarta-feira de cinzas, os
textos têm o cuidado em denunciar uma penitência hipócrita dos
gestos e atitudes rituais que esquecem a prática da justiça.
O que vem baralhar tudo é o demónio, ou o diabo, que entra logo de
serviço no primeiro Domingo. A narrativa das tentações de Cristo
pode ser mais breve ou mais longa. Depende dos autores. Referem-se
todas, porém, à iniciativa diabólica de contrariar o projecto de
Jesus, procurando convertê-lo à esperança messiânica dos seus
contemporâneos. Jesus ia intervir num país pobre, ocupado pelo
Império Romano e dominado pela religião.
Tentação diabólica significa solicitação para o caminho errado. Com
a palavra demónio, ou diabo, não se diz, apenas, a figura do mal,
mas aquela que procura atrair os outros para o mau caminho. Neste
caso, essa personagem conhece muito bem as esperanças messiânicas
mais divulgadas nas populações. Se Jesus pretende ter sucesso, não
as pode contrariar. Ele vai apresentar a Jesus os encargos de um
verdadeiro messias: resolver os problemas económicos e políticos
mais urgentes, com a espectacularidade religiosa própria de um Deus
omnipotente. O diabo até parece raciocinar bem: defende os
interesses de Deus, do povo e propõe a Jesus mostrar o que vale. Há
só um inconveniente: engana-se acerca de Deus, engana-se acerca dos
interesses mais profundos do povo e acerca do caminho que Jesus quer
trilhar.
3.
A Missa de hoje também não começa bem. O texto arqui-conhecido e
diabolicamente interpretado do Génesis (22, 1-18) apresenta um Deus
– como sendo o verdadeiro Deus - que vai pôr à prova a obediência
incondicional de Abraão, o pai dos crentes, mediante a morte do seu
único filho.
A narrativa não pode ser mais bela, mais dramática, mais cruel. Tem
motivado textos sublimes. Esquece-se, porém, que é preciso romper
com essa homenagem a um Deus sanguinário e a um Abraão enlouquecido.
A arte do texto diz uma coisa para dizer precisamente o seu
contrário: num contexto de divindades que exigiam os sacrifícios
humanos, como acto supremo da religião, aparece, no final da
história, um Deus que impede Abraão de fazer o que os deuses
propunham, a morte do seu filho. É o resgate do absurdo. Se a
divindade quer sacrifícios, que fique pelos correntes holocaustos de
animais, embora pouco apreciados pelos profetas.
Do belíssimo capítulo VIII da Carta aos Romanos seleccionaram, para
hoje, os versículos mais monstruosos: Deus não poupou o seu
próprio Filho mas O entregou à morte por todos nós. Quem não
perceber que se trata de uma linguagem abrasada pela retórica,
ficará com uma ideia de Deus que nunca poderia passar pela cabeça de
S. Paulo.
O Evangelho de S. Marcos (9,2-10) vem transfigurar tudo por uma voz
do Céu que só sabe dizer que esse Jesus é o Amado e nele o mundo
todo.
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