Bento Domingues - Triplo II: O blog do TriploV - Revista TriploV de Artes, Religiões e Ciências
 

1. Um velho descrente nos benefícios da religião de Fátima – salvo como fonte turística de mau gosto – descarregou em mim a sua revolta com o último 13 de Maio, organizado para reforçar o comércio do “ópio do povo”, gastando os joelhos das vítimas de promessas do desespero, consumindo toneladas de cera, poluindo o ambiente da Serra Daire e o ouvido musical dos peregrinos.

 

BENTO DOMINGUES, op

O ópio do povo

Bento Domingues . Frade da Ordem dos Dominicanos, teólogo, professor, escritor

Observei-lhe que não adiantava gastar cera comigo, pois a minha opinião sobre o assunto não conta para nada. Respeito as atitudes das almas e dos corpos abandonados a pedir socorro à única esperança disponível. O destino apropriado das suas críticas e sugestões seria o Reitor do Santuário, o Bispo da diocese de Leiria-Fátima e a Conferência Episcopal. A crítica da religião e das suas manifestações - se não for a filha preferida da ignorância e da má-fé – pode receber bom acolhimento em vários sectores da Igreja fiéis ao espírito do Vaticano II. O próprio Karl Marx, por um célebre texto de 1844, pode figurar como um bom interlocutor no ambíguo “pátio dos gentios” remodelado por Bento XVI: “A miséria religiosa constitui, ao mesmo tempo, a expressão da miséria real e o protesto contra a miséria real. A religião é o suspiro da criatura oprimida, o ânimo de um mundo sem coração e a alma de situações desalmadas. A religião é o ópio do povo”.

2. Como diria Qohélet (Eclesiastes), há tempo para rezar e tempo para protestar. No entanto, os Salmos judaicos, de uso nas igrejas cristãs, não são todos de louvor e petição. Alguns são de uma violência literária arrepiante. A crítica da religião esquecida do direito e da justiça, expressa pelos profetas, radicalizada por Jesus de Nazaré, faz de K.Marx, um menino de coro.

Em Fátima, os dias 12 e 13 de Maio reuniram um dos protestos mais impressionantes de quantos se realizaram em Portugal contra o desemprego galopante de jovens e adultos, a pobreza e a miséria de muitos e a insensibilidade dos que recebem fortunas e reformas escandalosas. Que haja quem ganhe 44 vezes mais do que os trabalhadores é pecado que brada aos céus, um roubo descarado, uma indecência pública.

A homilia do Cardeal G. Ravasi teve o cuidado de incitar os peregrinos a “sujar as mãos”. Foi uma metáfora muito usada por algumas correntes incarnacionistas do catolicismo do séc. XX. Mãos puras eram as daqueles que não tinham mãos para ajudar ninguém. Fátima só pode ser considerada ópio dos peregrinos se eles se contentarem com a “procissão do adeus” à Virgem, sem a promessa de se entregarem à alteração do meio em que vivem. Sem esse propósito terão sujado os pés e os joelhos inutilmente. Marx não criticava a religião por ser o “suspiro da criatura oprimida, o ânimo de um mundo sem coração e a alma de situações desalmadas”, mas por se tornar um refúgio em vez de um princípio de vida e de acção.

3. Neste sentido, não posso deixar de me referir a um documento ecuménico, o manifesto «Juntos pela Europa» 2012. Estes cristãos apresentam-se como cidadãs e cidadãos europeus, representantes de numerosos Movimentos e Comunidades, que querem viver o Evangelho de Jesus Cristo. São católicos, evangélicos, anglicanos, membros das Igrejas livres e ortodoxas, provenientes de muitos países e regiões da Europa. Confessam que, apesar das grandes diferenças de proveniência e de História, estão agora ligados por uma colaboração fraterna. Sentem que as suas diferenças não dividem, antes representam uma multiplicidade de dons. É uma unidade que não anula a identidade, mas que a reforça. Foi assim que os fundadores da Europa a imaginaram. Foram cristãos que tiveram a coragem de ter um grande sonho: a visão da unidade, após a tragédia dos totalitarismos, do horror da guerra e do colonialismo, do abismo da Shoah e dos campos de concentração.

Diante da crise que ameaça o nosso Continente, sentem que a resposta não está em ficarem fechados nas reivindicações nacionais, no antagonismo e na contraposição ou no regionalismo. A Europa precisa de mais unidade. Se os nossos povos enfrentarem sozinhos os desafios de um mundo globalizado, estarão destinados à irrelevância. A Europa é um destino e uma necessidade para cada um dos nossos países. Unida numa diversidade reconciliada, concretiza a civilização da convivência que o mundo precisa.

Querem afirmar que a sua fraternidade está ao serviço da unidade e da paz da Europa e de toda a família humana. A partir Bruxelas, berço do sonho europeu, comprometem-se a trabalhar por uma Europa unida, solidária e acolhedora. Pretendem tornar-se, com os outros europeus, um sinal de liberdade, justiça e solidariedade. Querem construir uma Europa que se abra com generosidade aos desafios do mundo pobre.

Não se pode exigir a um manifesto ecuménico que apresente um programa de acção. Mas sem ele como vencer o enjoo de tantos colóquios, debates, declarações, conversas, comentários de comentários, reuniões de reuniões e notícias de uma solução para breve, que nunca chega?

Por outro lado, Nossa Senhora de Fátima não deve gostar de continuar a ser considerada o “ópio do povo” quando se faz tudo para o desesperar.

   
 

Público, 20 de maio de 2012

 

   
   
 

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