Observei-lhe que não adiantava gastar cera comigo, pois a minha
opinião sobre o assunto não conta para nada. Respeito as atitudes
das almas e dos corpos abandonados a pedir socorro à única esperança
disponível. O destino apropriado das suas críticas e sugestões seria
o Reitor do Santuário, o Bispo da diocese de Leiria-Fátima e a
Conferência Episcopal. A crítica da religião e das suas
manifestações - se não for a filha preferida da ignorância e da
má-fé – pode receber bom acolhimento em vários sectores da Igreja
fiéis ao espírito do Vaticano II. O próprio Karl Marx, por um
célebre texto de 1844, pode figurar como um bom interlocutor no
ambíguo “pátio dos gentios” remodelado por Bento XVI: “A miséria
religiosa constitui, ao mesmo tempo, a expressão da miséria real e o
protesto contra a miséria real. A religião é o suspiro da criatura
oprimida, o ânimo de um mundo sem coração e a alma de situações
desalmadas. A religião é o ópio do povo”.
2.
Como diria Qohélet (Eclesiastes), há tempo para rezar e tempo para
protestar. No entanto, os Salmos judaicos, de uso nas igrejas
cristãs, não são todos de louvor e petição. Alguns são de uma
violência literária arrepiante. A crítica da religião esquecida do
direito e da justiça, expressa pelos profetas, radicalizada por
Jesus de Nazaré, faz de K.Marx, um menino de coro.
Em Fátima, os dias 12 e 13 de Maio reuniram um dos protestos mais
impressionantes de quantos se realizaram em Portugal contra o
desemprego galopante de jovens e adultos, a pobreza e a miséria de
muitos e a insensibilidade dos que recebem fortunas e reformas
escandalosas. Que haja quem ganhe 44 vezes mais do que os
trabalhadores é pecado que brada aos céus, um roubo descarado, uma
indecência pública.
A homilia do Cardeal G. Ravasi teve o cuidado de incitar os
peregrinos a “sujar as mãos”. Foi uma metáfora muito usada por
algumas correntes incarnacionistas do catolicismo do séc. XX. Mãos
puras eram as daqueles que não tinham mãos para ajudar ninguém.
Fátima só pode ser considerada ópio dos peregrinos se eles se
contentarem com a “procissão do adeus” à Virgem, sem a promessa de
se entregarem à alteração do meio em que vivem. Sem esse propósito
terão sujado os pés e os joelhos inutilmente. Marx não criticava a
religião por ser o “suspiro da criatura oprimida, o ânimo de um
mundo sem coração e a alma de situações desalmadas”, mas por se
tornar um refúgio em vez de um princípio de vida e de acção.
3.
Neste sentido, não posso deixar de me referir a um documento
ecuménico, o manifesto «Juntos pela Europa» 2012. Estes cristãos
apresentam-se como cidadãs e cidadãos europeus, representantes de
numerosos Movimentos e Comunidades, que querem viver o Evangelho de
Jesus Cristo. São católicos, evangélicos, anglicanos, membros das
Igrejas livres e ortodoxas, provenientes de muitos países e regiões
da Europa. Confessam que, apesar das grandes diferenças de
proveniência e de História, estão agora ligados por uma colaboração
fraterna. Sentem que as suas diferenças não dividem, antes
representam uma multiplicidade de dons. É uma unidade que não anula
a identidade, mas que a reforça. Foi assim que os fundadores da
Europa a imaginaram. Foram cristãos que tiveram a coragem de ter um
grande sonho: a visão da unidade, após a tragédia dos
totalitarismos, do horror da guerra e do colonialismo, do abismo da
Shoah e dos campos de concentração.
Diante da crise que ameaça o nosso Continente, sentem que a resposta
não está em ficarem fechados nas reivindicações nacionais, no
antagonismo e na contraposição ou no regionalismo. A Europa precisa
de mais unidade. Se os nossos povos enfrentarem sozinhos os desafios
de um mundo globalizado, estarão destinados à irrelevância. A Europa
é um destino e uma necessidade para cada um dos nossos países. Unida
numa diversidade reconciliada, concretiza a civilização da
convivência que o mundo precisa.
Querem afirmar que a sua fraternidade está ao serviço da unidade e
da paz da Europa e de toda a família humana. A partir Bruxelas,
berço do sonho europeu, comprometem-se a trabalhar por uma Europa
unida, solidária e acolhedora. Pretendem tornar-se, com os outros
europeus, um sinal de liberdade, justiça e solidariedade. Querem
construir uma Europa que se abra com generosidade aos desafios do
mundo pobre.
Não se pode exigir a um manifesto ecuménico que apresente um
programa de acção. Mas sem ele como vencer o enjoo de tantos
colóquios, debates, declarações, conversas, comentários de
comentários, reuniões de reuniões e notícias de uma solução para
breve, que nunca chega?
Por outro lado, Nossa Senhora de Fátima não deve gostar de continuar
a ser considerada o “ópio do povo” quando se faz tudo para o
desesperar. |