Bento Domingues - Triplo II: O blog do TriploV - Revista TriploV de Artes, Religiões e Ciências
 
 
 

1. O domingo foi, desde o começo do cristianismo, a primeira celebração da Páscoa. Quando não é traído, é ele que marca o ritmo cristão do tempo, vestido por todas as cores e acontecimentos da semana.

A partir do século II, por razões óbvias, deu-se um destaque especial à solenidade anual que assume as expressões populares e eruditas, onde ganha raízes. A participação na Eucaristia é a sua alma. Não deve ser celebrada como um concerto, uma representação teatral, um espectáculo. Quando, porém, escuto ou leio essa certíssima doutrina pressinto que é para aguentar um arremedo de música, de teatro, um triste espectáculo e o massacre de textos sublimes.

BENTO DOMINGUES, op

A música ajuda ou atrapalha?

Bento Domingues . Frade da Ordem dos Dominicanos, teólogo, professor, escritor

 

 

A realidade mística da Liturgia verifica-se na entrega à presença do Mistério Pascal, enquanto transformação da vida da assembleia celebrante.

O regime cristão é encarnacionista ao revelar, em expressões concretas, o valor divino do humano e o alcance humano do divino. Alguém disse que é uma antropologia para Deus e uma teologia para os seres humanos, em todas as suas relações. Estes não podem viver fora da linguagem simbólica e ritual; Deus connosco, também não. No entanto, o Espírito sopra onde quer e não está preso aos ritos sacramentais.

2. Quando se diz que só a beleza nos pode salvar, não se trata apenas da beleza relacionada com objectos, mas, sobretudo, da construção da vida toda como arte divina e humana, que reúna ética, estética e santidade. Mas, se o que importa é a existência humana como construção de beleza, é com a grande música, a grande poesia, a grande pintura que sentimos chegar a graça do despertar para a nossa realidade mais profunda.

Eduardo Lourenço, o poeta da crítica literária, confessa que o seu longo “percurso pascal” está, desde 1947, ligado à grande música (cf. Tempo da Música, Música do Tempo): «O que eu sou como ser mortal (o que todos somos), está contido na melancolia absoluta do allegretto da Sétima Sinfonia. Mas o que eu desejaria ser, o que não tenho coragem de ser, só se revela nesta Suite em Si Menor, de Bach. Diante desta torrente luminosa devia depor a minha velha pele, esta pele de que só a música me despe num instante, deixando-me nu e redimido, mas que no instante seguinte afogo em trevas. Delas só um Deus me poderia libertar. Digo Deus sabendo bem que esse absoluto que me atrevo a invocar é ainda o supremo álibi. É de mim, das ardentes seduções do meu próprio ser, que não quero ou de que não sou capaz de abdicar. Queria ir por um caminho de rosas para aquele sítio onde sei que me foi fixado encontro. E ninguém lá chega nunca sem antes morrer para si mesmo.»

3. Em 2003 nasceu o Festival de Música Sacra do Baixo Alentejo, Terras sem Sombra. Estamos em 2012 e este grande acontecimento, criado e impulsionado pelo professor António José Falcão, director do Departamento do Património Histórico e Artístico da Diocese de Beja, vem, todos os anos, acompanhado de um grande catálogo, com textos incontornáveis, “para estabelecer pontes entre o património, a música e a biodiversidade, numa região que se orgulha das suas raízes cristãs e está a encontrar nelas um estímulo para o desenvolvimento sustentável. Podemos verificar aqui, neste extraordinário laboratório artístico que é o Alentejo, como a cultura constitui uma porta essencial para a Evangelização.”

Este ano, com uma passagem célebre das Confissões de Santo Agostinho (X, 33) A. J. Falcão coloca, logo de início, a perplexidade do doutor de Hipona, perante o fascínio pelo puro gozo musical e a sua recusa.

«Porém, quando me lembro das muitas lágrimas, que derramei a ouvir os cânticos da Igreja, nos primórdios da recuperação da minha fé, e quando mesmo agora me comovo, não com o canto, mas com as coisas que se cantam, quando são cantadas com uma voz clara e uma modelação perfeitamente adequada, reconheço, de novo, a grande utilidade desta prática. Assim, flutuo entre o perigo do prazer e a experiência do efeito salutar e inclino-me mais, apesar de não pronunciar uma opinião irrevogável, a aprovar o costume de cantar na igreja, a fim de que, por meio do prazer dos ouvidos, o espírito mais fraco se eleve ao afecto da piedade. Todavia, quando me acontece que a música me comova mais do que as palavras, confesso que peco de forma a merecer castigo e, então, preferiria não ouvir cantar. Eis em que estado me encontro!»

Sto Agostinho não pertence à geração dos que, na Igreja, estão sempre a definir posições definitivas, irrevogáveis, mesmo em assuntos de conhecimento histórico, nos quais a dúvida deveria ser regra, para não cometer anacronismos para o presente e futuro.

Lembrei, no começo desta crónica, as interrogações indispensáveis para encontrar um caminho adequado à expressão litúrgica. Recorro, agora, à intuição de Vergílio Ferreira: a vibração do sagrado, que é a essência da religião, é de si uma vibração artística. Por outro lado, se Deus criara o mundo à escala humana, o artista recria-o à escala divina. Que harmonia importa realizar nas celebrações da fé cristã para que as linguagens das artes, especialmente da música, não se transformem na simples fruição de um espectáculo, mas no encontro com a Páscoa de Deus, nossa Páscoa? 

 
 

Público, 15 de abril de 2012

 

   
   
 
   
   
 

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