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A realidade mística da Liturgia verifica-se na entrega à presença do
Mistério Pascal, enquanto transformação da vida da assembleia
celebrante.
O regime cristão é encarnacionista ao revelar, em expressões
concretas, o valor divino do humano e o alcance humano do divino.
Alguém disse que é uma antropologia para Deus e uma teologia para os
seres humanos, em todas as suas relações. Estes não podem viver fora
da linguagem simbólica e ritual; Deus connosco, também não. No
entanto, o Espírito sopra onde quer e não está preso aos ritos
sacramentais.
2.
Quando se diz que só a beleza nos pode salvar, não se trata apenas
da beleza relacionada com objectos, mas, sobretudo, da construção da
vida toda como arte divina e humana, que reúna ética,
estética e santidade. Mas, se o que importa é a existência humana
como construção de beleza, é com a grande música, a grande poesia, a
grande pintura que sentimos chegar a graça do despertar para a nossa
realidade mais profunda.
Eduardo Lourenço, o poeta da crítica literária, confessa que o seu
longo “percurso pascal” está, desde 1947, ligado à grande música
(cf. Tempo da Música, Música do Tempo): «O que eu sou como
ser mortal (o que todos somos), está contido na melancolia absoluta
do allegretto da Sétima Sinfonia. Mas o que eu
desejaria ser, o que não tenho coragem de ser, só se revela nesta
Suite em Si Menor, de Bach. Diante desta torrente
luminosa devia depor a minha velha pele, esta pele de que só a
música me despe num instante, deixando-me nu e redimido, mas que no
instante seguinte afogo em trevas. Delas só um Deus me poderia
libertar. Digo Deus sabendo bem que esse absoluto que me atrevo a
invocar é ainda o supremo álibi. É de mim, das ardentes seduções do
meu próprio ser, que não quero ou de que não sou capaz de abdicar.
Queria ir por um caminho de rosas para aquele sítio onde sei que me
foi fixado encontro. E ninguém lá chega nunca sem antes morrer para
si mesmo.»
3.
Em 2003 nasceu o Festival de Música Sacra do Baixo Alentejo,
Terras sem Sombra. Estamos em 2012 e este grande
acontecimento, criado e impulsionado pelo professor António José
Falcão, director do
Departamento do
Património Histórico e Artístico da Diocese de Beja, vem,
todos os anos, acompanhado de um grande catálogo, com textos
incontornáveis, “para estabelecer pontes entre o património, a
música e a biodiversidade, numa região que se orgulha das suas
raízes cristãs e está a encontrar nelas um estímulo para o
desenvolvimento sustentável. Podemos verificar aqui, neste
extraordinário laboratório artístico que é o Alentejo, como a
cultura constitui uma porta essencial para a Evangelização.”
Este ano, com uma passagem célebre das Confissões de Santo
Agostinho (X, 33) A. J. Falcão coloca, logo de início, a
perplexidade do doutor de Hipona, perante o fascínio pelo puro gozo
musical e a sua recusa.
«Porém, quando me lembro das muitas lágrimas, que derramei a ouvir
os cânticos da Igreja, nos primórdios da recuperação da minha fé, e
quando mesmo agora me comovo, não com o canto, mas com as coisas que
se cantam, quando são cantadas com uma voz clara e uma modelação
perfeitamente adequada, reconheço, de novo, a grande utilidade desta
prática. Assim, flutuo entre o perigo do prazer e a experiência do
efeito salutar e inclino-me mais, apesar de não pronunciar uma
opinião irrevogável, a aprovar o costume de cantar na igreja, a fim
de que, por meio do prazer dos ouvidos, o espírito mais fraco se
eleve ao afecto da piedade. Todavia, quando me acontece que a música
me comova mais do que as palavras, confesso que peco de forma a
merecer castigo e, então, preferiria não ouvir cantar. Eis em que
estado me encontro!»
Sto Agostinho não pertence à geração dos que, na Igreja, estão
sempre a definir posições definitivas, irrevogáveis, mesmo em
assuntos de conhecimento histórico, nos quais a dúvida deveria ser
regra, para não cometer anacronismos para o presente e futuro.
Lembrei, no começo desta crónica, as interrogações indispensáveis
para encontrar um caminho adequado à expressão litúrgica. Recorro,
agora, à intuição de Vergílio Ferreira: a vibração do sagrado,
que é a essência da religião, é de si uma vibração artística.
Por outro lado, se Deus criara o mundo à escala humana, o artista
recria-o à escala divina. Que harmonia importa realizar nas
celebrações da fé cristã para que as linguagens das artes,
especialmente da música, não se transformem na simples fruição de um
espectáculo, mas no encontro com a Páscoa de Deus, nossa Páscoa?
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