Bento Domingues - Triplo II: O blog do TriploV - Revista TriploV de Artes, Religiões e Ciências
 
 
 

1. A partir da segunda metade do século XX e começos deste século, as tentativas de filosofia da religião desenvolveram-se, em diversos países, com uma intensidade e amplitude inesperadas.

Anselmo Borges, peça a peça, ensaio a ensaio, livro após livro, foi reunindo e reelaborando preciosos contributos para uma filosofia da religião afrontada pelo mal e desafiada pela esperança, na irrenunciável busca do Sentido num mundo paradoxal.

BENTO DOMINGUES, op

Regressam as interrogações fundamentais

Bento Domingues . Frade da Ordem dos Dominicanos, teólogo, professor, escritor

 

 

Anselmo Borges, padre da Sociedade Missionária da Boa Nova, mostrou-se sempre consciente de que o espírito de missão não se esgota nas consagradas expressões das congregações missionárias, católicas ou protestantes. Embora tivesse ensinado filosofia em Moçambique e tivesse procurado entender a originalidade do pensamento africano, não se deixou deslumbrar pelas formas apressadas da chamada missão inculturada. De formação teológica, transitou para a sociologia, acabando por se “profissionalizar” no ensino da filosofia, sobretudo, na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, regendo as cadeiras de Antropologia Filosófica, Filosofia da Religião e Ética, a par do trabalho como cronista do Diário de Notícias. Enquanto director da revista Igreja e Missão, promoveu encontros internacionais sobre o diálogo entre ciências, filosofias e religiões, que resultaram em textos marcantes dessa prestigiosa biblioteca de teologia da Missão.

A preocupação, o horizonte e o método de Anselmo Borges foram sempre guiados mais pelas interrogações do que pelas respostas que desses diálogos pudessem resultar. Por esse caminho foi desenvolvendo uma cultura, no interior do catolicismo português, que se recusa a ter respostas antes das perguntas, convencido de que um ser humano que não se atraiçoa é, antes de mais, alguém que interroga e é interrogado por tudo e por todos.

Poder-se-á objectar que o cristianismo resulta de uma proposta de salvação - revelada e exercida por “Cristo, com Cristo e em Cristo” - que só pode ser acolhida pela fé, também ela, um dom de Deus. Não se pode esquecer, porém, que se trata de um acontecimento na nossa história e no dinamismo vivido de forma pessoal e comunitária. É, portanto, um desenvolvimento de acontecimentos em relação. O ser humano que interroga é também interrogado pela palavra que vem de Deus. Como cantava Frei José Augusto Mourão, “Deus vem de Deus”, não é criatura nem do nosso desejo nem do nosso pensamento.

2. Se a prática da teologia, antes do Concílio do Vaticano II, foi muito reprimida, durante o período conciliar, algumas das figuras que mais tinham sofrido de suspeição e repressão tornaram-se os teólogos mais escutados, dentro e fora dessa magna e inovadora assembleia do Episcopado Católico. Foi sol de pouca dura. Mas, sobretudo, a partir dos anos 80, começou um eclipse da liberdade teológica que está a levar demasiado tempo a passar. Às interrogações sucedeu o clima das certezas cegas a propor e a defender. As ciências e as filosofias passaram a ser muito evocadas nos slogans da relação entre “fé e cultura” e “razão e fé”, mas a sua prática desertou, em muitos casos, dos cursos de teologia. Tende-se a privilegiar um positivismo bíblico-patrístico com pinceladas literárias e espiritualistas, a que falta o fogo da razão e os dinamismos do Espírito.

3. Na Idade Média, Tomás de Aquino (1225-1274) separou-se do positivismo teológico, do uso de exclusivos argumentos da autoridade revelada, que apenas documentam a fé, mas não explicam como é que é verdade aquilo que a Igreja confessa ser verdade. A fé cristã não é um calmante, mas o excitante da inteligência e dos afectos. Ele não cultiva a ignorância em nome de Deus, cuja existência não é evidente. Não dispensa, mesmo no interior da fé, os caminhos para a afirmação da Sua existência, não procurando, porém, saber como Deus é – algo impossível - mas, sobretudo, como Deus não é (I.Q.2).

Tomás de Aquino trabalhou num contexto de grande efervescência cultural, no encontro do pensamento grego, árabe, judaico e latino. Na sua elaboração teológica convergiam todos os saberes do seu tempo. Como diz K. Rahner, um dos seus discípulos do século XX, Tomás é um místico consciente de que Deus está para além de qualquer possibilidade de expressão, mas nunca cedeu à preguiça mental e à mediocridade intelectual; não dispensava o exercício da inteligência mesmo no acolhimento da revelação da esperança.

Hoje, encontramo-nos numa situação cultural de sedução e encantamento por tantas e tão rápidas descobertas científicas e invenções tecnológicas, mas com um misto de frustração e niilismo. Volta a pergunta: não será tudo, ao fim e ao cabo, e apesar de todas as maravilhas da Modernidade, uma paixão inútil, sem nada de absolutamente Transcendente? Neste mundo, o que resulta é glória nossa e não temos ninguém a quem atribuir os nossos fracassos. Do outro lado do abismo, não haverá nenhuma voz que chame por nós? [1]

Regressam, pois, as interrogações fundamentais que são impossíveis de aprofundar e formular sem filosofia, sem a filosofia da religião.

A recente publicação de Deus e o Sentido da Existência (Gradiva) e a bela reedição de Corpo e Transcendência (Almedina), de Anselmo Borges, ao darem muito que pensar, evitam as respostas apressadas e abrem para o Mistério de Deus como “futuro absoluto” da esperança e do amor.

 

[1] Cf. Sophia de Mello Breyner Andresen, A Viagem, in Contos Exemplares  (Figueirinhas, 2004), pág. 108

 

Público, 29 de janeiro de 2012

 

   
   
 
   
   
 

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