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Anselmo Borges, padre da Sociedade Missionária da Boa Nova,
mostrou-se sempre consciente de que o espírito de missão não se
esgota nas consagradas expressões das congregações missionárias,
católicas ou protestantes. Embora tivesse ensinado filosofia em
Moçambique e tivesse procurado entender a originalidade do
pensamento africano, não se deixou deslumbrar pelas formas
apressadas da chamada missão inculturada. De formação
teológica, transitou para a sociologia, acabando por se
“profissionalizar” no ensino da filosofia, sobretudo, na
Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, regendo as cadeiras
de Antropologia Filosófica, Filosofia da Religião e Ética, a par do
trabalho como cronista do Diário de Notícias. Enquanto director da
revista Igreja e Missão, promoveu encontros internacionais
sobre o diálogo entre ciências, filosofias e religiões, que
resultaram em textos marcantes dessa prestigiosa biblioteca de
teologia da Missão.
A preocupação, o horizonte e o método de Anselmo Borges foram sempre
guiados mais pelas interrogações do que pelas respostas que desses
diálogos pudessem resultar. Por esse caminho foi desenvolvendo uma
cultura, no interior do catolicismo português, que se recusa a ter
respostas antes das perguntas, convencido de que um ser humano que
não se atraiçoa é, antes de mais, alguém que interroga e é
interrogado por tudo e por todos.
Poder-se-á objectar que o cristianismo resulta de uma proposta de
salvação - revelada e exercida por “Cristo, com Cristo e em Cristo”
- que só pode ser acolhida pela fé, também ela, um dom de Deus. Não
se pode esquecer, porém, que se trata de um acontecimento na nossa
história e no dinamismo vivido de forma pessoal e comunitária. É,
portanto, um desenvolvimento de acontecimentos em relação. O ser
humano que interroga é também interrogado pela palavra que vem de
Deus. Como cantava Frei José Augusto Mourão, “Deus vem de Deus”, não
é criatura nem do nosso desejo nem do nosso pensamento.
2.
Se a prática da teologia, antes do Concílio do Vaticano II,
foi muito reprimida, durante o período conciliar, algumas das
figuras que mais tinham sofrido de suspeição e repressão tornaram-se
os teólogos mais escutados, dentro e fora dessa magna e inovadora
assembleia do Episcopado Católico. Foi sol de pouca dura. Mas,
sobretudo, a partir dos anos 80, começou um eclipse da liberdade
teológica que está a levar demasiado tempo a passar. Às
interrogações sucedeu o clima das certezas cegas a propor e a
defender. As ciências e as filosofias passaram a ser muito evocadas
nos slogans da relação entre “fé e cultura” e “razão e fé”, mas a
sua prática desertou, em muitos casos, dos cursos de teologia.
Tende-se a privilegiar um positivismo bíblico-patrístico com
pinceladas literárias e espiritualistas, a que falta o fogo da razão
e os dinamismos do Espírito.
3.
Na Idade Média, Tomás de Aquino (1225-1274) separou-se do
positivismo teológico, do uso de exclusivos argumentos da autoridade
revelada, que apenas documentam a fé, mas não explicam como é que é
verdade aquilo que a Igreja confessa ser verdade. A fé cristã não é
um calmante, mas o excitante da inteligência e dos afectos. Ele não
cultiva a ignorância em nome de Deus, cuja existência não é
evidente. Não dispensa, mesmo no interior da fé, os caminhos para a
afirmação da Sua existência, não procurando, porém, saber como Deus
é – algo impossível - mas, sobretudo, como Deus não é
(I.Q.2).
Tomás de Aquino trabalhou num contexto de grande efervescência
cultural, no encontro do pensamento grego, árabe, judaico e latino.
Na sua elaboração teológica convergiam todos os saberes do seu
tempo. Como diz K. Rahner, um dos seus discípulos do século XX,
Tomás é um místico consciente de que Deus está para além de qualquer
possibilidade de expressão, mas nunca cedeu à preguiça mental e à
mediocridade intelectual; não dispensava o exercício da inteligência
mesmo no acolhimento da revelação da esperança.
Hoje, encontramo-nos numa situação cultural de sedução e
encantamento por tantas e tão rápidas descobertas científicas e
invenções tecnológicas, mas com um misto de frustração e niilismo.
Volta a pergunta: não será tudo, ao fim e ao cabo, e apesar de todas
as maravilhas da Modernidade, uma paixão inútil, sem nada de
absolutamente Transcendente? Neste mundo, o que resulta é glória
nossa e não temos ninguém a quem atribuir os nossos fracassos. Do
outro lado do abismo, não haverá nenhuma voz que chame por nós?
[1]
Regressam, pois, as interrogações fundamentais que são impossíveis
de aprofundar e formular sem filosofia, sem a filosofia da religião.
A recente publicação de Deus e o Sentido da Existência (Gradiva)
e a bela reedição de Corpo e Transcendência (Almedina), de
Anselmo Borges, ao darem muito que pensar, evitam as respostas
apressadas e abrem para o Mistério de Deus como “futuro absoluto” da
esperança e do amor.
[1]
Cf. Sophia de Mello Breyner Andresen, A Viagem, in Contos
Exemplares (Figueirinhas, 2004), pág. 108 |