Bento Domingues - Triplo II: O blog do TriploV - Revista TriploV de Artes, Religiões e Ciências
 
1. Acaba de ser publicado o estudo sobre Identidades Religiosas em Portugal: representações, Valores e Práticas. A sondagem é realizada pelo Centro de Estudos de Religiões e Culturas (CERC), da Universidade Católica. Segundo os resultados, o primeiro retrato religioso dos portugueses, que se desdobra em muitos outros, apresenta-se com as seguintes percentagens: 79,5 católicos; protestantes (inclui evangélicos) 2,3; outros cristãos 1,4; testemunhas de Jeová 1,3; outras religiões 0,7; crentes sem religião 4,6; não crentes 9,6.
   

BENTO DOMINGUES, op

Um inquérito para esquecer?

Bento Domingues . Frade da Ordem dos Dominicanos, teólogo, professor, escritor

Segundo o relatório, coordenado por Alfredo Teixeira (CERC), em 12 anos, houve um decréscimo da população que se declara católica e um incremento da percentagem das outras posições de pertença religiosa, com particular destaque para o universo protestante (incluindo os evangélicos). Aumentou, também, o número de pessoas sem religião.

Dado que a sociologia, em Portugal, se desenvolveu a partir da Igreja, é normal que também seja aplicada a estudar as manifestações das religiões, a começar pelas do catolicismo. É de elementar justiça destacar a abrangência e a qualidade do Inquérito, que não podem ser avaliadas só pelos números referidos. Seria, aliás, interessante fazer um balanço sobre a forma como os meios de comunicação resumiram, apresentaram, comentaram esse vasto Inquérito e como está a ser recebido na sociedade, não apenas pelos comentadores habituais. Interessa, ainda, com maior razão, examinar o que dele se diz nos meios de comunicação Igreja, desde a Renascença aos boletins paroquiais, com os questionamentos que tem provocado.

As reacções da hierarquia, ou de alguns dos seus membros, são facilmente veiculadas pelos grandes meios de comunicação, pertençam ou não à Igreja. Mais difícil é ouvir as vozes católicas da base. Yves Congar gostava de lembrar que a Igreja é um “NÓS”. Quando se ouve dizer que nós somos igreja, não se repete, em primeiro lugar, o nome de um importante movimento internacional. Tenta-se exprimir a comunhão de todos os cristãos que se assumem como tais. O Movimento Nós Somos Igreja existe, apenas, para que não se percam as múltiplas manifestações e inquietações da realidade eclesial, que não podem ser reduzidas à visão e à voz da hierarquia. A este respeito, Santo Agostinho cunhou um luminoso aforismo eclesiológico: “para vós sou Bispo, convosco sou cristão”. Ser bispo é um encargo, um serviço; ser cristão é a progressiva transformação da vida pela acção da graça celebrada no Baptismo. Não deixar que mulheres, e homens casados, possam ser chamados a receber o sacramento da ordem e exercer os ministérios ordenados de bispos e presbíteros é, segundo muitos cristãos, dificultar a criação de novas comunidades e impedir que possam ser alimentadas na Eucaristia. Esta é considerada, oficialmente, o centro e cume de toda a arquitectura sacramental do catolicismo e indispensável na transfiguração da vida.

2. Um inquérito de sociologia não se destina a dizer se é bom ter ou não ter religião, nem apresentar qualquer classificação valorativa das diferentes religiões ou denominações cristãs. É normal que cada cidadão, segundo a sua condição de incréu ou religioso desta ou daquela religião, se alegre ou entristeça com a grandeza ou oscilação dos números. Se encararmos as pessoas com olhos clubísticos, moralistas ou partidários, tendemos a classificá-las e a julgá-las segundo a proximidade ou afastamento do grupo a que pertencemos. É normal. Mas se não formos intolerantes e tivermos a liberdade religiosa como um valor fundamental, não ofenderemos ninguém com as nossas preferências nem com o testemunho público das nossas convicções mais profundas. Os cristãos não podem esquecer as atitudes atribuídas a Jesus na relação com os diferentes grupos do seu povo e com pessoas de outros povos e culturas. 

Correndo o risco de anacronismo, talvez não seja inconveniente perguntar: segundo a distribuição feita no Inquérito, em que categoria poderíamos colocar Jesus Cristo?

Ao longo dos tempos, não tem sido fácil a classificação religiosa do Nazareno. Jesus, a Marginal Jew (Jesus, um Judeu Marginal), de John P. Meier - uma das obras mais conceituadas e recentes -, até no título confessa a sua dificuldade em O identificar com qualquer grupo do seu tempo. Uma das constantes tarefas atribuídas a Jesus foi a de desautorizar a qualificação das pessoas a partir das arrumações convencionais da sociedade em que viveu. Daí um célebre título, dos anos 60 do século passado, “Jesus em más companhias”, que corresponde, com muita exactidão, ao seu comportamento expresso na pergunta dos adversários: “Porque come Ele com os publicanos e pecadores?” (Mc. 2, 13-17).

3. Este Inquérito sociológico não pode ser ignorado quando, também em Portugal, se fala de programas de Nova Evangelização. É fundamental para que os programadores não se enganem de país. A 50 anos de distância, é incontornável a pergunta: o que foi feito, o que foi esquecido, o que falta fazer para realizar as esperanças do Vaticano II?  Mas, sobretudo, que os programadores olhem para o país que já não é, sob nenhum ponto de vista, o dos anos 60.

É de esperar que este cuidadoso Inquérito não tenha o destino do esquecimento, como aconteceu a muitas das orientações do Concílio Vaticano II.

   
 

Público, 30 de abril de 2012

 

   
   
 

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