Bento Domingues - Triplo II: O blog do TriploV - Revista TriploV de Artes, Religiões e Ciências
 
 
 
 
           1. Contaram-me que o Padre Victor Melícias, quando estava ligado aos Bombeiros, perante um incêndio enorme, terá insistido, numa linha de intervenção que indignou o responsável pelo comando das operações: cale-se, Padre Melícias! O senhor pode entender muito de fogo do Inferno, mas deste não percebe nada!
 

BENTO DOMINGUES, op

Queimar o país?

 

Frade da Ordem dos Dominicanos, teólogo, professor, escritor

Público, 23 de setembro de 2011

 

Menos sei eu, mas não estou obrigado a calar-me quando o país está a ser todo queimado e os sacrifícios dos bombeiros só conseguem que ainda fique alguma coisa para arder no ano seguinte! É estranho que este crime, esta destruição de recursos essenciais para o presente e para o futuro, não signifique nada, absolutamente nada, no debate político actual. Nenhum compromisso com a troika nos pode obrigar a entregar o país ao abandono e às chamas. Pode-se dizer que, se tenho obrigação de saber alguma de missas e religiões, estou dispensado de tocar num assunto que exige formação específica e informações rigorosas, analisadas num quadro pluridisciplinar. É verdade que não sou engenheiro florestal nem teórico do desenvolvimento sustentável.

Acontece, porém, que é a participação na Eucaristia que obriga os católicos a não passar ao lado das questões ecológicas e sociais. É o próprio Ofertório da missa que implica o casamento do Céu e da Terra: “bendito sejais Senhor, Deus do Universo, pelo pão e pelo vinho que recebemos da vossa bondade, frutos da terra e do trabalho humano que hoje Vos apresentamos e que para nós se vão tornar pão da vida e vinho da salvação”.

 Se trairmos esta aliança do divino e do humano na relação com a natureza, comemos e bebemos a nossa condenação na Eucaristia. É nela e por ela que dizemos o sentido do cosmos, da história humana e da vida espiritual de cada participante. Sem integrar a promoção do bem comum das comunidades locais e o cuidado pelo presente e futuro da terra, casa de todos, a missa renega o Cristo cósmico.

O cristão não pode aceitar que, em nome de modelos económicos discutíveis, se apresentem crimes contra a humanidade e seu habitat, como o preço inevitável a pagar por um “progresso” mal concebido. 

2. Segundo o Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas, a área ardida, 73.055 hectares, aumentou 81% face a 2011 (Cf. DN 12 de Setembro). Estas, por desgraça, não foram as últimas contas da temporada.  

Os incêndios não se desenvolvem na clandestinidade. As televisões têm nos fogos uma fonte de imagens, de beleza e de horror, cuja transmissão não tem só efeitos positivos. Se as vítimas humanas e as habitações causam arrepios, não se pode esquecer que um país é uma herança, um presente e um legado devido às gerações futuras. Um incêndio agride o país na sua totalidade. As florestas, a biodiversidade, o meio ambiente são um bem comum. Leonardo Boff tinha escrito, em 2001, uma obra que teve muitas edições, chamada “Saber Cuidar”. Este ano, surgiu com outra, “O Cuidado Necessário”. Cuidado a ter na vida, na saúde, na educação, na ecologia, na ética e na espiritualidade. É fácil encontrar na Internet a reflexão e as propostas deste teólogo e filósofo ecologista.

Durante um certo tempo, os incêndios eram atribuídos à ganância dos madeireiros e a certos projectos industriais de matas de crescimento rápido; falou-se, também, dos interesses colossais ligados às empresas dos meios de ataque aos fogos; sublinhou-se, por fim, a incúria dos proprietários dos terrenos com a sua limpeza; todos os anos é sussurrada a convicção de criminosos de fogo posto. Conhece-se a sorte dos ladrões de tabletes nos supermercados, mas sobre os incendiários, reina o silêncio. Resultado: grandes faixas do país tornaram-se um deserto humano. A emigração para o estrangeiro e para o litoral, devido ao abandono e à pobreza de uma agricultura de má subsistência, tornaram o interior desinteressante, salvo para algum turismo rural e para quem tem dinheiro para o sustentar.

3. A Igreja Católica, apesar do envelhecimento do clero e da persistente crise do modelo para os ministérios ordenados, mantem uma presença institucional efectiva em todo o território. Até à década de 70 do século passado, a reprodução do catolicismo, no âmbito rural, fazia-se automaticamente, embora de forma diferenciada de norte a sul do país. Já não é assim. Quando se fala de Nova Evangelização, toca-se numa urgência. Mas quem sabe o que isso possa significar e como a fazer?

Quanto ao espaço rural, o interior do país, o clero não precisa de se preocupar muito com o cabeção eclesiástico, mas nada o pode dispensar de uma intensa preparação para a prática efectiva da inculturação litúrgica e teológica. Ao falar de inculturação, não me estou só a referir àquilo que já corre em todos os manuais de Pastoral. Aponto para uma reelaboração situada nas comunidades locais e nas suas possibilidades, presentes e futuras. Ao se responsabilizarem pelo cuidado com o meio ambiente, estão a responsabilizar os políticos locais e nacionais. Não se pode continuar apenas a apagar fogos. Quem estará a impedir uma política de prevenção e de reorganização do território e das suas florestas? Há quem diga que a atracção pelo lucro rápido – eucaliptos e família –, esgota a terra fértil e promove o pasto de novos incêndios.

 

 

 

 

   
   
 
   
   
 

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