Bento Domingues - Triplo II: O blog do TriploV - Revista TriploV de Artes, Religiões e Ciências
 
 
 

          1. A inocência não dura a vida inteira. Contaram-me que, na semana passada, um miúdo perguntou à senhora Catequista: “Deus, quantas línguas fala?” Ela perdeu o pé e os outros aproveitaram para a expansão hilariante das perguntas recalcadas.

          Nada de mais normal. Assuntos que só podem ser verificados em registo de experiência mística, sempre ofereceram excelente material para o humor e a chacota. Quando tenho de aguentar algumas homilias, semeadas de referências à “palavra de Deus”, também me apetece perguntar: diga-me onde e quando ouviu Deus dizer as tolices que Lhe anda a atribuir?

BENTO DOMINGUES, op

Deus, quantas línguas fala?

Bento Domingues . Frade da Ordem dos Dominicanos, teólogo, professor, escritor

 
 

          Dir-se-á que, se o autor da Carta aos Hebreus tivesse de ligar às modernas teorias da linguagem sobre o que é falar, não teria coragem para começar essa grande peça cristológica, com o desembaraço que mostrou: “Muitas vezes e de muitos modos, falou Deus aos nossos pais, nos tempos antigos, por meio dos profetas. Nestes dias que são os últimos, Deus falou-nos por meio do Filho, a quem fez herdeiro de todas as coisas e por quem fez o mundo”(Heb 1,1-2).

        Esta apologética acerca da inovação cristã desenvolve-se no mesmo mundo cultural: o de quem escreve e o daqueles a quem se dirige. Nós vivemos a milhares de anos de distância. Por outro lado, no plano religioso, estamos sempre no reino da linguagem simbólica e metafórica, que exige uma hermenêutica adequada. A pregação e a catequese que a esqueçam podem encher-se de referências bíblicas, de “Palavra de Deus”, acabam por não dizerem nada a ninguém. Sem reconhecimento mútuo não há escuta. Quando se pede que as homilias sejam curtas, só pode ser para que o aborrecimento não seja longo. O que deve ser exigido é qualidade na pregação, que deverá encontrar os meios para incorporar e interpelar as preocupações, as alegrias e as esperanças da comunidade. Ser bom comunicador, não basta.

 

        2. Quando a pregação, a catequese, as celebrações oscilam entre o abstruso, o obsoleto e o deslavado, o novo elogio do silêncio e dos lugares e tempos que lhe são consagrados, na Europa ou no extremo Oriente, só pode ser bem recebido, de tão desejado.

          A sabedoria rasteira do Eclesiastes opta por uma evidência linear: há tempo para calar e tempo para falar. Dentro e fora das religiões há sempre quem fale quando deveria estar calado e quem emudeça quando deveria intervir.

          A dificuldade em saber conjugar silêncio e palavra, nas religiões, não é de agora. Na vasta produção exegética sobre o Prólogo do Evangelho de S. João – “No princípio era o Verbo” – destaco algumas observações de J. Jeremias. Depois de o apresentar como um Salmo, outros dirão um hino, nota que Sto Inácio de Antioquia fala de Jesus Cristo como o Logos de Deus saído do silêncio.

          O silêncio de Deus é uma noção que vem do judaísmo. Os rabinos, ao fazerem a exegese de Génesis 1, 3, perguntavam: Deus, antes de falar, o que havia? E respondiam: o silêncio de Deus. No mundo helénico, o “Silêncio” era o símbolo da mais alta divindade. Até existia uma oração ao Silêncio. Na “Liturgia de Mithra” (séc. IV), quando um místico, a caminho do céu, é ameaçado pelos deuses hostis e pelas potências estelares, é aconselhado a colocar o dedo sobre a boca e a pedir ao Silêncio a sua ajuda, pela oração: Silêncio,   Silêncio,   Silêncio / --símbolo do Deus eterno e imortal –/ acolhe-me sob as tuas asas, oh Silêncio.

          Oração comovente! Deus é silêncio. Está absolutamente longe e não fala. É um Deus escondido. Diante deste silêncio impenetrável só resta ao ser humano levantar os braços e gritar: «acolhe-me sob as tuas asas, oh Silêncio».

 

          3. É nesse mundo religioso - em que o silêncio de Deus era o sinal da sua indizível majestade -, que ressoa a mensagem da Igreja cristã; Deus não é silêncio, Deus fala.

          O Antigo Testamento é testemunha de que Deus falou muitas vezes e de muitos modos aos nossos antepassados dos tempos antigos, por meio de profetas. Mas, como diz J. Jeremias, Deus continuava inescrutável, invisível, escondido atrás de Principados e Potestades, atrás das tribulações e das angústias, atrás da máscara que era tudo o que não se podia ver. No entanto, Deus não ficou escondido para sempre. Houve um momento em que Deus retirou a sua máscara; de repente falou distinta e claramente. Isto aconteceu em Jesus de Nazaré. Aconteceu, sobretudo, na Cruz.

          O começo do Evangelho de João deve ter ressoado aos ouvidos daqueles que o ouviram pela primeira vez: Deus não é silêncio. Deus falou. Jesus de Nazaré é a Palavra – é a palavra pela qual Deus rompeu o silêncio.

          Nesta bela evocação do grande exegeta Jeremias, não ressalta, no entanto, algo que me parece essencial. Jesus Cristo, Deus sem máscaras, não é um Deus esvaziado do mistério que somos. Nele tocamos a carne da sua e da nossa insondável profundidade e pobreza.

          Deus fala. Em quantas línguas? Em todas as linguagens que precisem do silêncio para encontrarem a sua voz.

          Nos primeiros tempos dos Dominicanos tinha-se o silêncio como o pai dos pregadores. S. Domingos chamou ao Mosteiro de Prouille, de irmãs contemplativas, a santa pregação.

          Tinha razão quem disse, o silêncio gera ideias que dão muito trabalho.

 
 

Público, 8 de julho de 2012

 

   
   
 

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