|
Dir-se-á que, se o autor da Carta aos Hebreus tivesse de
ligar às modernas teorias da linguagem sobre o que é falar, não
teria coragem para começar essa grande peça cristológica, com o
desembaraço que mostrou: “Muitas vezes e de muitos modos, falou Deus
aos nossos pais, nos tempos antigos, por meio dos profetas. Nestes
dias que são os últimos, Deus falou-nos por meio do Filho, a quem
fez herdeiro de todas as coisas e por quem fez o mundo”(Heb 1,1-2).
Esta apologética acerca da inovação cristã desenvolve-se no
mesmo mundo cultural: o de quem escreve e o daqueles a quem se
dirige. Nós vivemos a milhares de anos de distância. Por outro lado,
no plano religioso, estamos sempre no reino da linguagem simbólica e
metafórica, que exige uma hermenêutica adequada. A pregação e a
catequese que a esqueçam podem encher-se de referências bíblicas, de
“Palavra de Deus”, acabam por não dizerem nada a ninguém. Sem
reconhecimento mútuo não há escuta. Quando se pede que as homilias
sejam curtas, só pode ser para que o aborrecimento não seja longo. O
que deve ser exigido é qualidade na pregação, que deverá encontrar
os meios para incorporar e interpelar as preocupações, as alegrias e
as esperanças da comunidade. Ser bom comunicador, não basta.
2. Quando a pregação, a catequese, as
celebrações oscilam entre o abstruso, o obsoleto e o deslavado, o
novo elogio do silêncio e dos lugares e tempos que lhe são
consagrados, na Europa ou no extremo Oriente, só pode ser bem
recebido, de tão desejado.
A sabedoria rasteira do Eclesiastes opta por uma evidência linear:
há tempo para calar e tempo para falar. Dentro e fora das religiões
há sempre quem fale quando deveria estar calado e quem emudeça
quando deveria intervir.
A dificuldade em saber conjugar silêncio e palavra, nas religiões,
não é de agora. Na vasta produção exegética sobre o Prólogo do
Evangelho de S. João – “No princípio era o Verbo” – destaco algumas
observações de J. Jeremias. Depois de o apresentar como um Salmo,
outros dirão um hino, nota que Sto Inácio de Antioquia fala de Jesus
Cristo como o Logos de Deus saído do silêncio.
O silêncio de Deus é uma noção que vem do judaísmo. Os rabinos, ao
fazerem a exegese de Génesis 1, 3, perguntavam: Deus, antes de
falar, o que havia? E respondiam: o silêncio de Deus. No mundo
helénico, o “Silêncio” era o símbolo da mais alta divindade. Até
existia uma oração ao Silêncio. Na “Liturgia de Mithra” (séc. IV),
quando um místico, a caminho do céu, é ameaçado pelos deuses hostis
e pelas potências estelares, é aconselhado a colocar o dedo sobre a
boca e a pedir ao Silêncio a sua ajuda, pela oração: Silêncio,
Silêncio, Silêncio / --símbolo do Deus eterno e imortal –/
acolhe-me sob as tuas asas, oh Silêncio.
Oração comovente! Deus é silêncio. Está absolutamente longe e não
fala. É um Deus escondido. Diante deste silêncio impenetrável só
resta ao ser humano levantar os braços e gritar: «acolhe-me sob
as tuas asas, oh Silêncio».
3.
É nesse mundo religioso - em que o silêncio de Deus era o sinal da
sua indizível majestade -, que ressoa a mensagem da Igreja cristã;
Deus não é silêncio, Deus fala.
O Antigo Testamento é testemunha de que Deus falou muitas vezes e de
muitos modos aos nossos antepassados dos tempos antigos, por meio de
profetas. Mas, como diz J. Jeremias, Deus continuava inescrutável,
invisível, escondido atrás de Principados e Potestades, atrás das
tribulações e das angústias, atrás da máscara que era tudo o que não
se podia ver. No entanto, Deus não ficou escondido para sempre.
Houve um momento em que Deus retirou a sua máscara; de repente falou
distinta e claramente. Isto aconteceu em Jesus de Nazaré. Aconteceu,
sobretudo, na Cruz.
O começo do Evangelho de João deve ter ressoado aos ouvidos daqueles
que o ouviram pela primeira vez: Deus não é silêncio. Deus falou.
Jesus de Nazaré é a Palavra – é a palavra pela
qual Deus rompeu o silêncio.
Nesta bela evocação do grande exegeta Jeremias, não ressalta, no
entanto, algo que me parece essencial. Jesus Cristo, Deus sem
máscaras, não é um Deus esvaziado do mistério que somos. Nele
tocamos a carne da sua e da nossa insondável profundidade e pobreza.
Deus fala. Em quantas línguas? Em todas as linguagens que precisem
do silêncio para encontrarem a sua voz.
Nos primeiros tempos dos Dominicanos tinha-se o silêncio como o pai
dos pregadores. S. Domingos chamou ao Mosteiro de Prouille, de irmãs
contemplativas, a santa pregação.
Tinha razão quem disse, o silêncio gera ideias que dão muito
trabalho.
|