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Hoje, continua a polémica entre os defensores da tradição liberal,
que tendem a situar a religião no âmbito da privacidade -
restringindo, na medida do possível, a sua influência na esfera
pública – e os autores que procuram reabilitar o papel da religião,
nesse contexto. É impossível desenvolver aqui os argumentos e as
teses principais que se defrontam. Prefiro a posição de Habermas: os
grupos que constituem a sociedade civil, entre os quais se encontram
as igrejas, têm como missão fazer chegar ao domínio institucional os
problemas da sociedade, para que este lhes dê solução.
Não está encerrada a filosofia da história que pretendia que o
progresso acabaria com a religião. Com o passar do tempo, foi
revalorizada a importância das motivações e funções sociais da
religião, que nenhuma ética racional pode substituir. No entanto, a
religião tende a ocupar um lugar residual e periférico, provisório e
constantemente ameaçado pela ciência e pelo pensamento filosófico,
grandes instâncias da modernidade.
2.
Segundo os textos do Novo Testamento, Jesus nunca pretendeu a
confessionalidade do Estado. Ficou célebre, e é muito repetida, a
sentença «dai a Deus o que é de Deus e a César o que é de César».
Também seria difícil encontrar, na boca de Jesus, um programa de
governo que se ocupasse, tecnicamente, da agricultura, das pescas,
da indústria, do comércio, da saúde e da assistência, etc., ou que
fornecesse indicações acerca da organização de um partido ou de um
sindicato. No entanto, a sua intervenção foi pública e, sem desenhar
alternativas em qualquer desses sectores da vida em sociedade, pôs
tudo em causa a partir de um questionamento no campo da religião
oficial: «O sábado foi feito para o ser humano e não o ser humano
para o sábado» (Mc. 2, 27). Formulou, assim, uma religião humanista.
O Deus com quem Jesus vive impele-o a servir os seres humanos. A
rivalidade entre o humano e o divino foi destruída. O próprio Jesus
é chamado o Emmanuel, o Deus connosco. Jesus deixa todo o espaço
livre para a invenção e alteração das sociedades. Só há um absoluto:
que tudo seja colocado ao serviço dos seres humanos e eles se
coloquem ao serviço uns dos outros. Quais poderão ser as
consequências para enfrentar agora a crise do País, da Europa, do
Mundo?
A resposta não está pronta em nenhuma página dos Evangelhos. Os
cristãos terão de encontrar, em cada época e em cada cultura, a
resposta mais adequada, sem garantias divinas. Cada um andará com
Deus por sua conta e risco.
3.
Os católicos dispõem da chamada Doutrina Social da Igreja que
recolhe o ensino dos Papas, desde Leão XIII até Bento XVI, passando
pelo Vaticano II e por um conjunto de pensadores do social,
como lhes chama e apresenta Yves Calvez.
Que fazer com esse conjunto doutrinal e com todas as experiências no
mundo do trabalho e da investigação? Não seria desejável pensar em
governos e partidos católicos, como governos e partidos
confessionais. Não adianta imitar os países muçulmanos. Na Igreja
Católica existe a liberdade de escolha política e democracia, pouco
respeitada nas suas instituições, mas vivamente recomendada na
sociedade. Os limites são de carácter ético em questões extremas.
Dir-se-á que os resultados práticos não são muito brilhantes. Cada
pessoa e cada grupo tende a chamar para as suas opções o patrocínio
dessa importante doutrina social. Parece que há textos para todos os
gostos e cada um poderá fazer com eles o que bem entender. Bendita
liberdade, mas talvez se possa conversar sobre isso. A partir do
Vaticano II foi promovido o diálogo inter-religioso, foi
intensificado o diálogo ecuménico e enquanto Igreja no mundo
contemporâneo é constantemente impelida a fazer a leitura dos sinais
dos tempos. Temos de nos regozijar com esses frutos do Vaticano II.
Mas apetece-me perguntar: para quando o diálogo entre movimentos
católicos, paróquias e dioceses, a nível local e nacional, sobre
formas concretas de vencer esta crise que torna o presente doloroso
e não abre o futuro? Se todos nós somos igreja, se somos
confrontados com os ensinamentos da sua doutrina social, é preciso
testá-la, com o contributo de todos, perante os desafios desta
conjuntura.
Há muita coisa a fazer para vencer a crise. Não esqueçamos esta.
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