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Segundo as narrativas do Evangelho, mal Jesus acabou de reorientar a
sua vida e de abandonar o caminho de João Baptista, foi assaltado
por tentações que procuravam separá-lo da sua missão de intervir no
mundo a partir dos excluídos e humilhados.
Os Evangelhos sinópticos comprazem-se em encenar três formas
simbólicas de corrupção, tão simbólicas que foram, são e continuarão
omnipresentes: a económica, a política e a religiosa. Mostram que
este quadro é fundamental para especificar a missão de Jesus, a
alteração que Ele procurou imprimir às concepções messiânicas do seu
tempo e que continuam a interrogar-nos.
As três tentações são, todas elas, populistas. Se Jesus queria ter
sucesso, era obrigado a resolver, ainda que de forma miraculosa, a
questão económica: “converter pedras em pão”. A seguir, teria de
mostrar que tinha força para vencer a humilhação do seu povo: em vez
de um país ocupado, Jesus deveria apresentar-se com um desígnio
dominador de outros povos, fazendo uma aliança com o diabo, senhor
do mundo. Finalmente, só com uma religião, feita espectáculo, seria
possível realizar o programa económico e político.
Este diabo é um perito em corrupção teológica. Deus é reduzido a um
agente económico, dominador dos povos e um milagreiro de pacotilha.
O diabo é quem distribui o jogo do céu e da terra.
2.
As evocadas narrativas dos evangelhos mostram que, se Jesus resistiu
às seduções do dinheiro, do poder e da religião exibicionista, o
mesmo não aconteceu com os seus discípulos. A raiz da sua
incompreensão do caminho de Jesus é, particularmente, sublinhada em
S. Marcos (caps. 4 a 10). Eles procuram o caminho do sucesso, do
poder, da dominação. Desenvolve-se, entre eles, uma tal rivalidade
que os divide em grupos de pressão. É dito, expressamente, que a
discussão entre eles versava sobre esta questão muito simples:
quando Jesus conseguisse o poder, qual deles seria o maior? Tiago e
João, filhos de Zebedeu, adiantaram-se: «Mestre, queremos que nos
concedas o que te vamos pedir. Ele perguntou: que quereis que vos
conceda? Disseram: que nos concedas, na tua glória, sentar um à tua
direita e o outro à tua esquerda (…) Ouvindo isto, os dez começaram
a indignar-se contra Tiago e João. Chamando-os, Jesus disse-lhes:
sabeis que aqueles que vemos governar as nações as dominam e os seus
grandes as tiranizam. Entre vós não deverá ser assim: ao contrário,
aquele que dentre vós quiser ser grande, seja o vosso servidor e
aquele que quiser ser o primeiro dentre vós, seja o servo de todos.
Pois o Filho do Homem não veio para ser servido, mas para servir e
dar a sua vida em resgate por muitos».
Poderíamos, agora, fazer um mapa de todas as situações e
intervenções de Jesus em relação ao poder económico, político e
religioso. Não se trata de uma maldição, mas de um combate,
multifacetado, a essa idolatria que transforma os seres humanos em
escravos daquilo que os deveria servir. Numa sociedade laica, este
discurso pode parecer completamente desajustado. Só na aparência.
Deus e a religião não são chamados ao caso, mas as leis da economia,
da finança e da gestão foram divinizadas ao serviço de um deus cada
vez mais oculto. São milhares e milhares os seus sacerdotes formados
nos santuários das ciências da economia, da finança e da gestão, que
o servem e pregam reverência aos ignorantes, aos que não
frequentaram essas universidades classificadas como santuários de
excelência.
3.
Ficando no plano religioso, os esquemas da corrupção teológica são
muito variados. Apesar de, nos textos do Novo Testamento, Jesus
Cristo ser a presença humana de Deus, desenvolveu-se uma cristologia
que o colocou longe daqueles de quem é irmão. A partir daí, foi
preciso desenvolver um sistema de mediações, de cunhas e influências
para conseguir as suas graças. A devoção a Nossa Senhora e aos
Santos – segundo a especialidade de cada um –, pretendendo
aproximar-nos de Cristo, acaba por dar a ideia errada de que Ele
está longe de nós. Ora Jesus Cristo é a máxima proximidade de Deus,
Deus connosco. Os Santos são expressões dessa proximidade.
A oração, o acto essencial da religião, o acto de atenção e de
acolhimento do Mistério, não se deve transformar numa técnica de
tirar Deus da sua distracção, ignorância ou indiferença. Não é um
meio de informação e convencimento de Deus.
Somos criados à imagem e semelhança do incansável, eterno e
misterioso amor de Deus. Não devemos criar representações de Deus à
imagem e semelhança dos nossos defeitos. Essa é a grande corrupção
teológica. |