|
Durante algum tempo, o Vaticano II foi saudado como estação
primaveril da Igreja, um acontecimento providencial, a grande graça
do século XX. Passados poucos anos, tornou-se para uns, uma
revolução traída, para outros, sobretudo na Europa e nos EUA, o
começo do descalabro do catolicismo: muitos padres, religiosos e
religiosas abandonaram o caminho que tinham escolhido, os seminários
e noviciados foram ficando meio vazios e a pastoral tradicional da
família e da juventude ressentiu-se, gravemente, das consequências
da encíclica Humanae Vitae.
João Paulo II percorreu o mundo e teve, nos meios de comunicação
social, um tal acolhimento que deu a ilusão de que as suas denúncias
e propostas bastavam para dar a volta a todos os problemas. Ele
sabia que a Europa já não era o centro do mundo e que precisava de
uma nova evangelização para recuperar a memória cristã. Os esforços
pela inclusão do nome de Deus, no tratado da constituição da União
Europeia, não tiveram êxito. Esta acabou por se perder de si mesma.
De que andarão à procura os técnicos da sua gestão, para não darem
com a chave e os caminhos para uma Europa solidária?
A geografia económica e financeira do mundo alterou-se. Quem se
preocupará com valores humanos universais partilháveis, num
acelerado processo de globalização sem rumo?
2.
Nestes processos de mudança, o que se poderá pedir à Igreja? Que não
fique parada e ajude a encontrar, com todas as pessoas de boa
vontade, sinais de esperança neste mundo que parece não ter qualquer
sentido.
Aliás, como dizia A. Malraux, o mundo sem esperança é irrespirável.
Note-se que o documento do Vaticano II que acabou por ser promulgado
com a designação de Alegria e Esperança (Gaudium et Spes)
foi, durante muito tempo, chamado Tristeza e Angústia (Luctus et
Angor).
Temos de ter cuidado, no entanto, com a repetição beata de que é
preciso ter esperança, de que a esperança é a última a morrer, de
que o ser humano é aquele que espera, de que Deus não nos abandona e
outras sabedorias do género. A esperança não é um automatismo.
Precisa de razões impulsionadoras, de ser alimentada e de pernas
para andar.
“Renovação e Esperança” é o tema da semana de estudos da “vida
consagrada”. A pergunta de fundo talvez possa ser assim formulada:
não será a própria noção de “vida consagrada” que precisa de ser
renovada para ter pernas para andar num mundo completamente
diferente daquele que conheceu no passado? As formas do tempo nunca
foram indiferentes à inteligência e às expressões de “vida
consagrada”. Em cada época teve realizações muito diversas, segundo
os carismas de cada fundador e as necessidades da Igreja e da
sociedade.
Muitos leram um livro célebre sobre Morte e Vida das Ordens
Religiosas. Dele fica uma lição: aquelas que não quiserem ou não
souberem renovar-se escusam de falar de esperança ou de imaginar
artifícios para morrer. Se há uma noção vital e transversal a todo o
Vaticano II, para o presente e para o futuro, é, sem dúvida, a de
atenção aos sinais dos tempos.
3.
A Igreja existe para fazer memória viva de Jesus Cristo, em todo o
tempo e lugar. O primeiro olhar da Igreja deve manter-se atento à
vida e à mensagem de Jesus, segundo as condições históricas em que
viveu e as formas como as comunidades cristãs o acolheram e o
testemunharam. O que é constante e original é a vontade prática de
Jesus de “fazer família” com quem não era da sua família biológica.
Há, no Novo Testamento, um contencioso familiar, originado por esta
opção. Ele não é contra a sua família nem contra a família dos
discípulos, mas contra o facto de, na sua família e na dos
discípulos, não entenderem a sua opção de ver o mundo como uma
família (Mc 3, 20-35).
A Igreja deve ser o sinal e o instrumento de um mundo de mãos dadas,
de um mundo que tende a entender-se como sendo uma só família, na
multiplicidade de todos os povos e culturas.
Quando, em vez de ser este sinal e este fermento, a Igreja caiu nas
tentações do poder, o Espírito de Cristo suscitou, ao longo da
história, pessoas, grupos, movimentos que viveram e vivem, de forma
prática, essa vocação de toda a Igreja.
Se as expressões actuais de vida religiosa, ou “vida consagrada”,
quiserem participar na alegria da renovação de toda a Igreja ao
serviço da humanidade, devem começar, elas próprias, por viver de
forma inovadora - segundo os tempos, os lugares e as culturas -,
essa difícil arte de sermos família com pessoas que não escolhemos,
mas acolhemos.
Os votos de pobreza, obediência e castidade só têm sentido se forem
vividos como instrumentos de libertação e disponibilidade para
todos, sobretudo, para aqueles a quem a família foi roubada.
|