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1.
No domingo passado, a Diocese de Lamego recebeu o seu novo
bispo, António Couto, que, no dia anterior, tinha
manifestado desejos de ver alterada a indústria de conserva
pastoral: "É preciso, de facto, uma nova maneira de
comunicar o Evangelho, não tão abstracta, não tão "chata",
mas muito mais viva, muito mais jovem, muito mais bela,
muito mais dinâmica."
Essa desejável modificação não será, certamente, fruto de
"tontos com iniciativa", como dizia um padre espanhol
desiludido com caricaturas da chamada "cultura juvenil".
Espero, todavia, ouvir dizer aos católicos de Lamego: nós
somos Igreja em transformação, pois estamos a mobilizar,
pelo silêncio meditativo, pela palavra e acção, os sonhos,
as energias e os carismas de todas as pessoas de boa
vontade, dentro e fora das sacristias. |
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Foi tão repetida, desde João Paulo II, a urgência de uma "Nova
Evangelização" que ela corre o perigo de envelhecer antes de
começar. As preocupações e iniciativas restauracionistas não
favorecem novas experiências, não abrem novos caminhos, nem
despertam a imaginação criadora para as linguagens do Evangelho que
exprimam o sentido do que há de melhor no mundo moderno e exorcizem
velhos demónios que perpetuam a ganância do dinheiro, do poder,
servida com astúcias pseudo-religiosas.
2. Quem fez a selecção dos textos bíblicos para exprimir a
Eucaristia deste domingo não podia oferecer nada mais adequado para
indicar as múltiplas dimensões e caminhos da acção evangelizadora. O
Livro de Job (7,1-7) não permite olhar só para o mundo dos bem
sucedidos na vida: "Os meus dias passam mais velozes do que a
lançadeira do tear e desvanecem-se sem esperança. Recordai-vos que a
minha vida não passa de um sopro e que meus olhos nunca mais verão a
felicidade."
Com S. Paulo mudámos de registo. Depois do encontro que o abalou até
às raízes, a partilha da alegria é a alma da sua vida: "Ai de mim,
se não anunciar o Evangelho." (I Co 9. 16-23)
Com Jesus Cristo, a contemplação orante, a palavra reveladora do
sentido da vida e a intervenção que muda a sorte dos sem sorte
exigem-se mutuamente. As narrativas dos Evangelhos, um livro do
desassossego, apresentam-no sempre a cuidar de doentes físicos e
psíquicos. Nunca pode descansar na pura contemplação. Quando se
retirava para rezar, vinham sempre dizer-lhe: andam à tua procura e
ele não se desculpava: "Vamos a outros lugares, às povoações
vizinhas, a fim de pregar aí também, pois foi para isso que eu vim."
(Mc 1.29-39)
3. Humberto de Romans (1200-1277), quinto mestre geral da
Ordem dos Pregadores, triste com os irmãos que se dispersavam por
mil coisas secundárias, descobriu uma bela retórica para os conduzir
à sua vocação essencial: "Neste mundo, Cristo celebrou apenas uma
missa, no dia da Ceia. Não se consegue ler, em lado nenhum, que
tenha ouvido confissões. Pouco e raramente distribuiu sacramentos.
Não gastou muito tempo com as horas canónicas. O mesmo se diga de
outras actividades, salvo a oração e a pregação. Mas pode ler-se:
logo que começou a tarefa da pregação, entregou-lhe a vida toda,
mais ainda do que à oração."
Humberto de Romans pretende centrar os seus confrades no carisma da
ordem fundada por S. Domingos de Gusmão (1170-1221), a Ordem dos
Pregadores (O.P.). Este tinha reunido um grupo de irmãos dedicados
inteiramente à pregação do Evangelho, governados por constituições
por eles elaboradas e a reformar conforme as necessidades de tempo e
lugar. É uma democracia representativa e, por isso, não pediu a Roma
a sua aprovação, mas apenas cartas de recomendação.
Não era uma decisão pacífica. Ordem dos Pregadores é o Episcopado.
Na Idade Média, os bispos eram senhores feudais, mais
administradores de propriedades do que pregadores do Evangelho. Esta
ordem religiosa nasceu para colmatar uma lacuna, um vazio, o mais
grave vazio da Igreja, o esquecimento da proclamação do Evangelho,
como sentido, beleza, responsabilidade e impulso para a
transfiguração da vida.
Que fazer para que a pregação da Igreja não se torne numa verborreia
interminável, abstracta e chata, de que tantos se queixam? Na Idade
Média, fazia-se uma distinção, não uma separação, entre
lectio, disputatio e praedicatio.
Sem preparação no estudo, na oração e no debate, não podia surgir
pregação que valesse a pena. Quando alguém era apresentado para
pregador, não bastava examiná-lo sob o ponto de vista da sua
preparação intelectual e da sua capacidade argumentativa. Era
preciso saber se esse candidato tinha
a graça da pregação.
Sem ela a pregação não pode ter qualquer graça, não será uma fonte
de alegria que brota do coração.
No entanto, para não se confundir a palavra do pregador com a voz da
propaganda, por mais religiosa que seja, importa descobrir a
sintonia dessa voz com a voz do silêncio e com a voz das alegrias e
inquietações do mundo.
O Evangelho é voz da consolação e do desassossego: vinde a mim vós
todos os que andais aflitos... Ai de vós que já tendes tudo e não
olhais para o lado, para quem não tem nada. A Igreja não pode
colocar fardos pesados sobre os ombros dos outros e não lhes tocar
com um dedo. Hoje, há muitas técnicas para que a Palavra da Igreja
não seja "chata". Mas pode tornar-se vazia.
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