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As boas receitas, mesmo de quem as não experimenta, merecem
agradecimento. Na perplexidade actual, porém, a modéstia do bíblico
Coélet, um investigador e pregador pouco enfatuado, nem céptico nem
convencido, parece mais adequada.
Para ele, sábio é aquele que “tem olhos na cabeça” e não
corre atrás do vento; tenta compreender a sabedoria e o
conhecimento, mas não ignora a loucura e a tolice; encontrou no
vazio de tudo, tempo de chorar e tempo de rir; tempo de gemer e
tempo de dançar; tempo de amar e tempo de odiar; tempo de guerra e
tempo de paz.
Nesta figura poética não há solução nem para a vida nem para
a morte; mais perto do animal do que do anjo, não entende nem Deus
nem os seres humanos, mas é a Deus, de quem o recebeu, que regressa
o sopro da vida e não à terra escura da morte (Eclesiastes, sec.III
a.C.).
2. Essa sabedoria não está à espera de nada decisivo que
possa mudar o rumo do mundo. S. Paulo, um rabino judeu e o primeiro
escritor cristão, pensa que, com Jesus Cristo, se entrou numa nova
era da humanidade. Nenhuma sabedoria humana, filosófica ou
religiosa, estava à altura dessa revolução que não olha só para a
frente ou para trás – uma ideologia do progresso ou da restauração
de um passado mítico - mas que fixa o olhar da inteligência e do
coração no mundo dos atirados para a margem da vida. Paulo julga que
se não andassem cegos não teriam crucificado a própria encarnação da
sabedoria de Deus (1Cor.1-2).
Uma civilização arrastada pelos jogos insaciáveis da
especulação financeira não pode ter olhos para o mundo daqueles que
crucifica e abandona.
No Novo Testamento, escrito a partir da experiência da fé na
presença do Ressuscitado, surgem narrativas que procuram encontrar
as razões que impediram - tanto os dirigentes romanos como as
autoridades religiosas - de verem em Jesus, aquele que Espinosa
classificou como “o maior dos filósofos” e, certamente, um dos
maiores mestres de vida orientada pela sabedoria da inteligência e
do coração.
O que me espanta e alegra na Missa, quando abro o Livro, é o convite
insistente a proclamar o Evangelho de Jesus
Cristo, seja qual for a passagem que se apresente e seja ela
atribuída a autores tão diversos com S. Marcos, S. Mateus, S. Lucas
ou S. João. “Evangelho” significa boa notícia, não simplesmente uma
boa notícia, mas a de Jesus Cristo. A proclamação não se dirige aos
contemporâneos dos escritores dessas espantosas narrativas de há
2000, mas às pessoas com quem estou a celebrar. O importante é
tornar-me hermeneuta do sentido do texto para a presente situação
espiritual, no contexto económico, social e político, sem resvalar
nem para o comício, nem para o moralismo, nem para a conversa de chá
de tília. Descobrir e celebrar o sentido, a beleza, o impulso de
graça e a responsabilidade que Jesus imprime hoje na vida de todos
os dias, é um processo de passagem do abatimento para a alegria e a
coragem.
3. Dizer a alguém que acaba de perder o emprego ou que tem um
cancro, alegra-te, sabe, necessariamente, a insulto. Mas compreendo
a intimação de S. Paulo: Alegrai-vos sempre no Senhor. Novamente vos
digo: Alegrai-vos. Por causa dessa ordem, na semana passada, surgiu
o Domingo da Alegria.
Não me parece grande ideia fazer dele o Domingo da excepção e os
outros, talvez sim ou talvez não. A insistência de S. Paulo
desautoriza a transformação do cristianismo numa religião que só
está bem de joelhos e cabisbaixa. Aliás, desistir da luta pela
alegria é desistir do próprio Evangelho, pois é para que ela seja
completa que Jesus Cristo veio a este mundo e não o pode abandonar (Jo
16, 20-24; 1Jo 1,1-4).
S. Lucas conta que Jesus enviou os discípulos a pregar. Regressaram
entusiasmados com os resultados espectaculares que conseguiram.
Jesus confirmou que era verdade, mas não deixou que isso se
transformasse numa vaidade: «Não vos alegreis porque os espíritos se
vos submetam; alegrai-vos, antes, porque os vossos nomes estão
inscritos nos céus», isto é, no coração de Deus.
O espantoso do texto vem logo a seguir: «Naquele momento, Ele
estremeceu de alegria, sob a acção do Espírito Santo e disse: Eu te
louvo, ó Pai, Senhor do céu e da terra, porque ocultaste estas
coisas aos sábios e entendidos, e as revelaste aos pequeninos (…)
Voltando-se para os discípulos disse-lhes, a sós: Felizes os olhos
que vêm o que vós vedes! Pois Eu vos digo que muitos profetas e reis
quiseram ver o que vós vedes, mas não viram; ouvir o que vós ouvis,
mas não ouviram. (Lc 10, 17-24)».
Se Jesus não tivesse dito mais nada, confesso que isto me bastava.
Saber que nos dias bons e nos dias maus, aconteça o que acontecer,
temos casa e mesa postas no coração de Deus, não é tudo, mas sabe
bem. |