Bento Domingues - Triplo II: O blog do TriploV - Revista TriploV de Artes, Religiões e Ciências
 
 
 

1. A crise, quando chega, não é para todos. Os santos que já estão nos altares, com mais ou menos velas, com mais ou menos flores, não devem ter motivos para grandes apreensões. Diferente pode ser a sorte dos que foram empurrados para dispendiosos processos de canonização. Exercitados na virtude da paciência, não serão muito tentados a ir acampar com os “indignados”, frente à Catedral anglicana de S. Paulo. Vão continuar na lista de espera, aguardando tempos mais favoráveis.

BENTO DOMINGUES, op

A CRISE DOS SANTOS

Bento Domimgues . Frade da Ordem dos Dominicanos, teólogo, professor, escritor

 

 

Em princípio, cortes ou deslocações de feriados de origem religiosa não devem encontrar, nem da parte dos fiéis nem da hierarquia uma oposição muito dura. Nas fontes cristãs não existe a obsessão de tempos e lugares sagrados, intocáveis. Está a chegar o Natal e os cristãos não podem fazer do 25 de Dezembro uma data histórica do nascimento de Jesus, nem de Belém o lugar onde nasceu. Também não se pode marcar, com exactidão, nem o dia, nem a hora, nem o local da Ressurreição de Cristo. São tempos e lugares simbólicos. Não significa que sejam irreais. São super-reais. Só a linguagem simbólica pode sugerir o mistério e, em primeiro lugar, o mistério de existir.  

A este respeito, há, no 4º Evangelho, uma conversa exemplar na qual a Samaritana pergunta a Jesus onde se deve adorar a Deus: Os nossos pais adoraram-no neste monte, mas vós dizeis que é em Jerusalém que se deve adorar. Resposta de Jesus: Acredita-me, mulher, vem a hora em que nem neste monte, nem em Jerusalém adorareis o Pai (…) os verdadeiros adoradores adorarão o Pai em espírito e verdade; pois tais são os adoradores que o Pai procura. Deus é espírito e aqueles que o adoram devem adorá-lo em espírito e verdade ( Jo 4, 20-24).

Toda a trama da narrativa dos discípulos de Emaús – também ela profundamente simbólica - mostra que não há um Cristo de Domingo e outro de semana, um da Eucaristia e outro dos caminhos do quotidiano (Lc 24).

2. É conhecida a luta de Jesus contra a sacralização de tempos e lugares. Para ele, sagrado é o ser humano. Ficou célebre uma sentença que nunca deve ser esquecida, diante de qualquer instituição: o Sábado é para o ser humano e não o ser humano para o Sábado.

Para quem saiba o que este dia representava na religião em que ele foi educado, o à vontade de Jesus só podia ser entendido como uma provocação. Para os seus adversários, uma das provas de que ele não podia ser o Messias esperado era esta: ele nem sequer respeitava o Sábado. Se fazia coisas milagrosas era como agente de Beelzebu, o príncipe dos demónios, para enganar os incautos. Como poderia ser ele um enviado de Deus, se não observava o dia em que o próprio Deus descansou, segundo a narrativa do Génesis? Ainda hoje, as interpretações fundamentalistas da Bíblia fazem dessa narrativa uma representação histórica, esquecendo que se trata de uma belíssima composição poética. Está construída para celebrar a bondade e a beleza do mundo.

A invenção do Sábado, o descanso semanal, é uma das mais prodigiosas de toda a história. O ser humano não é apenas uma máquina de trabalho, um escravo da produção.

Sendo assim, porque se terá Jesus enervado tanto com a sacralização do Sábado? Não esqueçamos que a redacção destas intervenções de Jesus é feita num contexto de polémica entre os seus discípulos e outros grupos judeus. Existe, no entanto, algo de incontornável nas reacções de Jesus: se o Sábado é o dia de Deus, tem de ser o grande dia da alegria humana. Quando, em nome de Deus, o ser humano é sobrecarregado de mandamentos, Deus é ofendido. Quando se faz do dia da liberdade um feixe de interditos, Deus deixa de ser o nome da infinita respiração da vida., para ser a sua negação.

3. Quem, na Igreja, se assustar com alguns cortes nos feriados religiosos, deve lembrar-se que em todas as semanas há um Domingo.

A pergunta que os cristãos devem colocar a si próprios, talvez possa ser esta: Que fizemos e que fazemos dos domingos para que, de dentro e de fora da Igreja, se diga que a frequência da Eucaristia dominical está em queda?

Vítimas de uma sociologia barata, identificando a prática cristã só com a religião dominical, caímos em dois equívocos. Por um lado, esquecemos que a vida de todos os dias, quando é vivida como procura da verdade, da justiça e da bondade, como transformação, é a prática cristã. É neste quotidiano que Jesus Cristo, o clandestino, anda connosco. Por outro lado, o que celebramos na Eucaristia é, precisamente, essa caminhada, sabendo que ainda não somos o que devemos ser e que precisamos de encontrar a linguagem simbólica que exprima a vida toda, como processo de conversão, para que a nossa alegria seja completa (1ª Jo 1, 1-4 )

Que qualidade devem ter as celebrações para que sejam expressão e impressão da nossa fé no Ressuscitado e na ressurreição semanal da vida? Para quem tenha uma visão mecanicista dos sacramentos, tanto dá a beleza da liturgia como a sua insignificância. Feito o rito, está tudo feito. A realização dos sacramentos passa a ser apenas um falso pretexto para a graça de Deus. Fica esquecido o essencial, a qualidade da linguagem simbólica das celebrações. Ora, os sacramentos são “causa” da graça, na medida da sua significação. Esvaziar esta linguagem é tornar as celebrações um aborrecimento. Depois queixem-se da crise.

 

 

Público, 6 de Novembro de 2011

 

 

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