|
Em princípio, cortes ou deslocações de feriados de origem religiosa
não devem encontrar, nem da parte dos fiéis nem da hierarquia uma
oposição muito dura. Nas fontes cristãs não existe a obsessão de
tempos e lugares sagrados, intocáveis. Está a chegar o Natal e os
cristãos não podem fazer do 25 de Dezembro uma data histórica do
nascimento de Jesus, nem de Belém o lugar onde nasceu. Também não se
pode marcar, com exactidão, nem o dia, nem a hora, nem o local da
Ressurreição de Cristo. São tempos e lugares simbólicos. Não
significa que sejam irreais. São super-reais. Só a linguagem
simbólica pode sugerir o mistério e, em primeiro lugar, o mistério
de existir.
A este respeito, há, no 4º Evangelho, uma conversa exemplar na qual
a Samaritana pergunta a Jesus onde se deve adorar a Deus: Os
nossos pais adoraram-no neste monte, mas vós dizeis que é em
Jerusalém que se deve adorar. Resposta de Jesus: Acredita-me,
mulher, vem a hora em que nem neste monte, nem em Jerusalém
adorareis o Pai (…) os verdadeiros adoradores adorarão o Pai em
espírito e verdade; pois tais são os adoradores que o Pai procura.
Deus é espírito e aqueles que o adoram devem adorá-lo em espírito e
verdade ( Jo 4, 20-24).
Toda a trama da narrativa dos discípulos de Emaús – também ela
profundamente simbólica - mostra que não há um Cristo de Domingo e
outro de semana, um da Eucaristia e outro dos caminhos do quotidiano
(Lc 24).
2.
É conhecida a luta de Jesus contra a sacralização de tempos e
lugares. Para ele, sagrado é o ser humano. Ficou célebre uma
sentença que nunca deve ser esquecida, diante de qualquer
instituição: o Sábado é para o ser humano e não o ser humano para o
Sábado.
Para quem saiba o que este dia representava na religião em que ele
foi educado, o à vontade de Jesus só podia ser entendido como uma
provocação. Para os seus adversários, uma das provas de que ele não
podia ser o Messias esperado era esta: ele nem sequer respeitava o
Sábado. Se fazia coisas milagrosas era como agente de Beelzebu, o
príncipe dos demónios, para enganar os incautos. Como poderia ser
ele um enviado de Deus, se não observava o dia em que o próprio Deus
descansou, segundo a narrativa do Génesis? Ainda hoje, as
interpretações fundamentalistas da Bíblia fazem dessa narrativa uma
representação histórica, esquecendo que se trata de uma belíssima
composição poética. Está construída para celebrar a bondade e a
beleza do mundo.
A invenção do Sábado, o descanso semanal, é uma das mais prodigiosas
de toda a história. O ser humano não é apenas uma máquina de
trabalho, um escravo da produção.
Sendo assim, porque se terá Jesus enervado tanto com a sacralização
do Sábado? Não esqueçamos que a redacção destas intervenções de
Jesus é feita num contexto de polémica entre os seus discípulos e
outros grupos judeus. Existe, no entanto, algo de incontornável nas
reacções de Jesus: se o Sábado é o dia de Deus, tem de ser o grande
dia da alegria humana. Quando, em nome de Deus, o ser humano é
sobrecarregado de mandamentos, Deus é ofendido. Quando se faz do dia
da liberdade um feixe de interditos, Deus deixa de ser o nome da
infinita respiração da vida., para ser a sua negação.
3.
Quem, na Igreja, se assustar com alguns cortes nos feriados
religiosos, deve lembrar-se que em todas as semanas há um Domingo.
A pergunta que os cristãos devem colocar a si próprios, talvez possa
ser esta: Que fizemos e que fazemos dos domingos para que, de dentro
e de fora da Igreja, se diga que a frequência da Eucaristia
dominical está em queda?
Vítimas de uma sociologia barata, identificando a prática cristã só
com a religião dominical, caímos em dois equívocos. Por um lado,
esquecemos que a vida de todos os dias, quando é vivida como procura
da verdade, da justiça e da bondade, como transformação, é a prática
cristã. É neste quotidiano que Jesus Cristo, o clandestino, anda
connosco. Por outro lado, o que celebramos na Eucaristia é,
precisamente, essa caminhada, sabendo que ainda não somos o que
devemos ser e que precisamos de encontrar a linguagem simbólica que
exprima a vida toda, como processo de conversão, para que a nossa
alegria seja completa (1ª Jo 1, 1-4 )
Que qualidade devem ter as celebrações para que sejam expressão e
impressão da nossa fé no Ressuscitado e na ressurreição semanal da
vida? Para quem tenha uma visão mecanicista dos sacramentos, tanto
dá a beleza da liturgia como a sua insignificância. Feito o rito,
está tudo feito. A realização dos sacramentos passa a ser apenas um
falso pretexto para a graça de Deus. Fica esquecido o essencial, a
qualidade da linguagem simbólica das celebrações. Ora, os
sacramentos são “causa” da graça, na medida da sua significação.
Esvaziar esta linguagem é tornar as celebrações um aborrecimento.
Depois queixem-se da crise.
|