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1.
Quem gosta de barulho tem, nas férias, novas oportunidades. Conheço
um lugar muito frequentado, um rectângulo à beira mar – junto a uma
praia imensa e quase deserta – com um café-restaurante que despeja,
sobre as pessoas, dia e noite, um barulho doido a fazer de música,
regado a cerveja e publicidade. Quando se reclama, a resposta é
sempre a mesma: “é disto que a juventude gosta”.
Os
seduzidos pelo silêncio pedem, às férias, mais sossego. Sossego não
é isolamento. Num dos seus livros, Juan Masiá cita o conhecido
ensaio – Soledad – de Miguel de Unamuno (1864-1936): ”Os homens só
se sentem verdadeiramente irmãos quando se ouvem uns aos outros no
silêncio das coisas, através da solidão… A solidão derrete essa
espessa capa de pudor que isola uns dos outros; só na solidão nos
encontramos; e, ao encontrarmo-nos, encontramos, em nós, todos os
nossos irmãos… Só na solidão elevamos o nosso coração ao coração do
Universo… Só na solidão podes conhecer-te a ti mesmo como próximo;
enquanto não te conheceres a ti mesmo como próximo, não poderás
chegar a ver, nos teus próximos, outros ‘eus’. Se queres aprender
amar os outros, recolhe-te em ti mesmo” (1).
Segundo o mestre Dogen – “mestre da arte do olhar contemplativo” –,
não basta retirar-se para a montanha em busca de solidão. Seria
melhor ter o espírito da montanha dentro de si, no meio do
inevitável ruído. Atribui a Buda, no seu último sermão aos seus
discípulos, algumas atitudes para a vida quotidiana: aprender a
desejar; aprender a conversar sem discutir; aprender a perseverar no
caminho interior; aprender a viver no tempo sem obsessão do tempo;
aprender a relacionar-se com tudo e com todos de forma
contemplativa; aprender a saborear a solidão; aprender a não
exagerar; aprender a cultivar a sabedoria lúcida e compassiva. Não
basta praticar Zen, importa converter-se em Zen a vida inteira. De
outro modo, sofre-se a mudar continuamente de lugar, à procura do
retiro ideal sem o encontrar: para onde quer que vá, levará consigo
os seus desejos desorientados.
2.
Começámos com Unamuno, o autor de um livro de amizade ibérica (2),
passámos pelo Japão e voltamos a Espanha ao encontro de um monge
português, Carlos Maria Antunes – que foi pároco em Santarém e
assistente do MCE –, radicado, agora, no Mosteiro Cisterciense de
Santa Maria de Sobrado, na Galiza, também ele tentando adentrar-se
na solidão como humilde peregrino: “ainda que alguns passos sejam
especialmente duros, é o nosso mais original contributo para a
grande sinfonia da vida, para a qual toda a criação está convocada.
(…) Solidão tantas vezes experimentada como dor, quando atravessada,
pode transfigurar-se em festa” (3).
Peregrinos de nós mesmos. Quem melhor o diz é o brasileiro Guimarães
Rosa, no Grande Sertão Veredas: “o mais importante e bonito do mundo
é isto: que as pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram
terminadas – mas que elas vão sempre mudando”.
O
muito premiado escritor angolano, Ondjaki, cita-o com outra
liberdade: “cada criatura é um rascunho a ser retocado sem cessar…
nas madrugadas da noite” (4).
3.
Etty Hillesum (1914-1943), uma judia marcada pelo Evangelho, foi
transformando a solidão imposta numa descoberta: “Como vos amo,
minhas noites de solidão! Fico estendida de costas na minha cama
estreita, completamente abandonada à noite… com um sentimento de
fazer parte de um grande processo de crescimento. Ontem à noite,
senti de repente que a minha paisagem interior era como um vasto
campo de milho a amadurecer… dentro de mim há campos de milhos que
vão crescendo e amadurecendo”. Ajoelhava-se, “cobrindo o rosto com
as mãos, tentando desta forma, encontrar uma certa paz e escutar
essa fonte oculta dentro de mim” que fazia crescer a sua paisagem
interior (5). Foi morta em Auschwitz.
Se
Etty cobria o rosto para ver, outros santos do século XX foram
mortos por andarem a abrir os olhos àqueles que queriam construir e
manter o mundo à base da cegueira racial: Mahatma Gandhi (1869-1948)
e Martín Luther King (1929-1968). Gandhi, moldado pela Bhagavad-Gita
e pelo Sermão da Montanha do Evangelho, tendo começado na África do
Sul a sua luta não-violenta, fez dela, não só uma organização
sistemática do protesto contra a segregação racial, mas também o
meio de uma revolução das consciências, da transformação das
pessoas, que conduziu a Índia, dominada pelo poder colonial
britânico, à vitória da independência. Foi morto a tiros. No seio
das contradições da sociedade norte-americana, Luther King, pastor
da Igreja Baptista, discípulo da resistência não-violenta, organizou
e liderou um longo processo de peregrinações para a liberdade do
povo negro segregado, descriminado, humilhado e sem direitos.
Resistiu a todos os obstáculos e contrariedades. Quando, no seu
último sermão, anunciou que já estava a ver a vitória e a glória do
Senhor, foi morto a tiro.
Gandhi e Luther King prefiguraram, com a vida e com a acção
não-violenta, uma nova civilização que continua em dores de parto.
Não desertemos do mistério do tempo, da nossa responsabilidade em
imaginar e fazer o impossível. |