Bento Domingues - Triplo II: O blog do TriploV - Revista TriploV de Artes, Religiões e Ciências
 
 
 

1. Ao preparar a homilia para a celebração eucarística deste domingo, fui tentado a situar a parábola dos talentos no contexto de alguns aspectos escandalosos da crise actual ao deixar o poder da alta finança dominar o poder político, tornando-se ambos indiferentes ao sofrimento dos indefesos. Na conclusão do texto de S. Mateus, seleccionado para hoje, está escrito algo que não pode fazer parte de nenhum evangelho decente: “a todo aquele que tem dar-se-á mais e terá em abundância; mas, àquele que não tem, até o pouco que tem lhe será tirado”.

Parece o perfeito retrato, por antecipação, da loucura actual. Segundo Paul Krugman, prémio Nobel da Economia (2008), com a oligarquia de estilo americano ”temos uma sociedade na qual o dinheiro está cada vez mais concentrado nas mãos de uns poucos e essa concentração de rendimentos e riquezas ameaça transformar-nos numa democracia de nome, não de facto”. Pergunta: quem está a ter os grandes lucros? A resposta é rotunda: uma minoria muito rica e muito pequena.

BENTO DOMINGUES, op

As parábolas não são catecismos

Bento Domimgues . Frade da Ordem dos Dominicanos, teólogo, professor, escritor

 

 

Acabo de ler uma obra recém-publicada nas edições do Cerf, resultado das Jornadas Bíblicas de um Laboratório de estudos dos monoteísmos, de Paris (CNRS). Fiquei desapontado. Não com a qualidade dos estudos, mas com a própria história da exegese da parábola dos talentos desde a antiguidade cristã até aos nossos dias. Talvez peça às parábolas o que a própria natureza da sua linguagem não pode dar.

2. Como dizia um grande mestre da semiótica, o saudoso frei José Augusto Mourão, uma parábola é uma comparação tecida numa representação. Permite que o reino de Deus tome lugar na linguagem dos seres humanos e nas imagens da sua vida. Mesmo que estas imagens e linguagem nunca esgotem o seu mistério, importa ouvir, acolher o seu trabalho e a sua acção em nós. Presta-se um mau serviço às parábolas tentando torná-las claras. É, enquanto linguagem metafórica, indirecta, que elas permitem falar do que escapa à descrição, aludindo a realidades impossíveis de dizer.

O reino de Deus não é um objecto que se descreva, mas um dinamismo que só em parábolas pode ser sugerido. Mostra-se eficaz pelos frutos no receptor, pela alteração que provoca na vida e nas relações com os outros.

O estilo das parábolas não pretende, em primeiro lugar, instruir, mas acordar para um percurso de iniciação na escuta do Outro. É também nas transformações da vida que se processa a descoberta do mistério que somos para nós próprios. Algumas parábolas são pedradas lançadas ao pântano da nossa indiferença perante o essencial, encoberto pelas ilusões que nos cegam. Tecendo narrativas com evidências mundanas chocantes, abrem brechas para escutar e ver tudo de modo completamente diferente, sem manual de instruções.

3. No capítulo 25 do Evangelho de S. Mateus há três parábolas escandalosas: a das virgens prudentes e das virgens loucas, das formigas e das cigarras; a dos talentos, um desavergonhado elogio do capitalismo selvagem e a do juízo final que parece anular as anteriores, de forma pouco ortodoxa. Ao fazer estas alusões, não se pretende reduzi-las a essas banalidades. Ao longo dos anos fui quebrando o isolamento entre elas, não para apagar a originalidade insubstituível de cada uma, mas para tentar acolher melhor o escândalo transfigurador que as percorre. Convido os possíveis leitores deste texto, a voltarem a esse capítulo, exposto a infinitas leituras, salvando-o do meu curto olhar.

        Afastemos, desde já, a ideia de que nele se pretende dar instruções acerca das atitudes correctas e incorrectas nos relacionamentos humanos ou uma proposta de prémios e castigos na gestão de negócios de quem, à partida, os distribui com pura arbitrariedade. Embora seja esse o tecido da linguagem da parábola dos talentos, se fosse só para saber isso não precisaríamos de recorrer a textos do Evangelho, atribuídos a Jesus Cristo, carregados de enigmas e significações ocultas.

       A linguagem dessas parábolas sugere-me o seguinte: com o perigo de nos perdermos de nós mesmos, não podemos andar sempre a adiar os trabalhos da descoberta do mistério imenso que nos habita, o sentido último da vida que se joga no quotidiano. Só temos esta vida para o encontro decisivo. O que finalmente conta não é apenas o que cada um faz das suas capacidades e oportunidades. Ficando só por aí, resvalamos para a moral do prémio e do castigo, sem acesso ao reino da graça, da economia da pura gratuidade.

As parábolas usam realidades humanas e desumanas para provocar um salto para um mundo em que perdemos o pé e onde descobrimos o reino daqueles que só o amor puro movimenta, mesmo sem o saberem.

É precisamente essa uma das tarefas da terceira parábola – a do juízo final - corrigindo o unilateralismo interesseiro das anteriores. Com efeito, nem os que fazem o bem, cuidando de quem ninguém tem interesse em cuidar, nem os que passam indiferentes ao sofrimento alheio sabem que tocaram ou recusaram o infinito, o próprio sentido último da história humana. Mas é precisamente o que acontece.

 

Público, 13 de Novembro de 2011

 

   
   
 
   
   
 

http://www.we-are-church.org/pt/

   
   
   
Bibliografia Científica - Botânica - Cibercultura/Ciberarte - Colóquios - Espírito - Ficção - Gnose - Herpetologia - História - Instituto S.Tomás De Aquino (ISTA)
Letras - Links - Naturalismo - Naturarte - Normas - Ornitologia - Poesia - Surrealismo - Teatro - Venda das Raparigas - Viagens-Lugares - Zoo_Ilógico

 

 

 

 

Magno Urbano - iPhone/iPad Applications