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Acabo de ler uma obra recém-publicada nas edições do Cerf, resultado
das Jornadas Bíblicas de um Laboratório de estudos dos monoteísmos,
de Paris (CNRS). Fiquei desapontado. Não com a qualidade dos
estudos, mas com a própria história da exegese da parábola dos
talentos desde a antiguidade cristã até aos nossos dias. Talvez peça
às parábolas o que a própria natureza da sua linguagem não pode dar.
2.
Como dizia um grande mestre da semiótica, o saudoso frei José
Augusto Mourão, uma parábola é uma comparação tecida numa
representação. Permite que o reino de Deus tome lugar na linguagem
dos seres humanos e nas imagens da sua vida. Mesmo que estas imagens
e linguagem nunca esgotem o seu mistério, importa ouvir, acolher o
seu trabalho e a sua acção em nós. Presta-se um mau serviço às
parábolas tentando torná-las claras. É, enquanto linguagem
metafórica, indirecta, que elas permitem falar do que escapa à
descrição, aludindo a realidades impossíveis de dizer.
O reino de Deus não é um objecto que se descreva, mas um dinamismo
que só em parábolas pode ser sugerido. Mostra-se eficaz pelos frutos
no receptor, pela alteração que provoca na vida e nas relações com
os outros.
O estilo das parábolas não pretende, em primeiro lugar, instruir,
mas acordar para um percurso de iniciação na escuta do Outro. É
também nas transformações da vida que se processa a descoberta do
mistério que somos para nós próprios. Algumas parábolas são pedradas
lançadas ao pântano da nossa indiferença perante o essencial,
encoberto pelas ilusões que nos cegam. Tecendo narrativas com
evidências mundanas chocantes, abrem brechas para escutar e ver tudo
de modo completamente diferente, sem manual de instruções.
3.
No capítulo 25 do Evangelho de S. Mateus há três parábolas
escandalosas: a das virgens prudentes e das virgens loucas, das
formigas e das cigarras; a dos talentos, um desavergonhado elogio do
capitalismo selvagem e a do juízo final que parece anular as
anteriores, de forma pouco ortodoxa. Ao fazer estas alusões, não se
pretende reduzi-las a essas banalidades. Ao longo dos anos fui
quebrando o isolamento entre elas, não para apagar a originalidade
insubstituível de cada uma, mas para tentar acolher melhor o
escândalo transfigurador que as percorre. Convido os possíveis
leitores deste texto, a voltarem a esse capítulo, exposto a
infinitas leituras, salvando-o do meu curto olhar.
Afastemos, desde já, a ideia de que nele se pretende dar
instruções acerca das atitudes correctas e incorrectas nos
relacionamentos humanos ou uma proposta de prémios e castigos na
gestão de negócios de quem, à partida, os distribui com pura
arbitrariedade. Embora seja esse o tecido da linguagem da parábola
dos talentos, se fosse só para saber isso não precisaríamos de
recorrer a textos do Evangelho, atribuídos a Jesus Cristo,
carregados de enigmas e significações ocultas.
A linguagem dessas parábolas sugere-me o seguinte: com o
perigo de nos perdermos de nós mesmos, não podemos andar sempre a
adiar os trabalhos da descoberta do mistério imenso que nos habita,
o sentido último da vida que se joga no quotidiano. Só temos esta
vida para o encontro decisivo. O que finalmente conta não é apenas o
que cada um faz das suas capacidades e oportunidades. Ficando só por
aí, resvalamos para a moral do prémio e do castigo, sem acesso ao
reino da graça, da economia da pura gratuidade.
As parábolas usam realidades humanas e desumanas para provocar um
salto para um mundo em que perdemos o pé e onde descobrimos o reino
daqueles que só o amor puro movimenta, mesmo sem o saberem.
É precisamente essa uma das tarefas da terceira parábola – a do
juízo final - corrigindo o unilateralismo interesseiro das
anteriores. Com efeito, nem os que fazem o bem, cuidando de quem
ninguém tem interesse em cuidar, nem os que passam indiferentes ao
sofrimento alheio sabem que tocaram ou recusaram o infinito, o
próprio sentido último da história humana. Mas é precisamente o que
acontece. |