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1. Roubei este título, ou antes subtítulo, ao
último texto do dominicano José Augusto Mourão (1947-2011),
publicado nos “Cadernos ISTA” (nº 23), revista da qual era director
desde 1997 (1). Tanto esse número como esse texto admirável encerram
um ciclo. Pedem uma pequena genealogia. Com a colaboração de vários
professores estrangeiros, os Dominicanos criaram, em 1952, o Studium
de Filosofia e Teologia, Sedes Sapientiae, em Fátima, aberto a
outras congregações religiosas. Com os mesmos professores, em 1954,
foi criado o Instituto S. Tomás de Aquino (ISTA), começando as suas
actividades por um Curso de Verão de Teologia, com duração de três
semanas em três anos, destinado a religiosas, educadores da
juventude e, mais tarde, aberto aos leigos. Foi uma iniciativa
pioneira e teve um grande e prolongado êxito. Entretanto, nasceram,
em 1965, os Encontros Teológicos, no Porto e em Coimbra. Destes,
fala o Dr. Urbano Duarte, então, director do Correio de Coimbra:
“Uma comissão de leigos incentivou a realização deste III Encontro
de Teologia para Leigos, a cargo do Instituto de S. Tomás dos Padres
Dominicanos de Fátima (…). Mais uma vez, foi impressionante e,
podemos dizer, novo, o êxito alcançado. Nada em Coimbra se lhe pode
comparar, em matéria de cultura religiosa: os conferencistas, muito
bem preparados e expondo aspectos teológicos actualizados; os
ouvintes, às centenas, com predomínio de estudantes universitários;
entre a assistência, muitos que em salões caracteristicamente
confessionais não costumam entrar; na exposição evidencia-se a
sinceridade, o tom franco é por vezes cáustico para mais claro
contraste de interpretações; o mesmo também nas questões postas para
diálogo. A sobriedade melíflua, o ‘santo engano’, ou a paz morta à
sombra da ignorância não tiveram assento nestas assembleias de
reflexão sobre a Fé” (2).
As aulas do Curso de Verão eram policopiadas e
distribuídas pelos alunos. A partir de 1996, os Cadernos ISTA
tornaram-se o meio de ampliar a audiência destes cursos, assim como
o debate que eles pretendiam instaurar.
Frei José Augusto Mourão, em parceria com outras
instituições científicas e com equipas que soube reunir, assumiu, no
âmbito do ISTA, algumas das tarefas do Instituto Histórico
Dominicano, organizando vários e importantes congressos e colóquios
a nível nacional e internacional como, por exemplo, o Congresso
sobre a Inquisição.
2. Quando referi que roubei o título desta
crónica ao subtítulo do último texto do meu confrade, é porque o
título é mais vasto e algo programático: “Um entre os outros: à
escuta do outro”.
Para quem pode, as férias são tempo de viagens,
da ilusão do encontro com o outro. Hoje, já não é preciso viajar
para encontrar as mais diversas gentes. José Augusto introduz o seu
texto com um fragmento da Ode Marítima, de Álvaro de Campos: “As
viagens, os viajantes – tantas espécies deles!/ Tanta nacionalidade
sobre o mundo! Tanta profissão!/ Tanta gente!/ Tanto destino diverso
que se pode dar à vida,/ À vida, afinal, no fundo sempre, sempre a
mesma!/ Tantas caras curiosas! Todas as caras são curiosas/ E nada
traz tanta religiosidade como olhar muito para gente./ A
fraternidade afinal não é uma ideia revolucionária./ É uma coisa que
a gente aprende pela vida fora, onde tem que tolerar tudo/ E passa a
achar graça ao que tem de tolerar,/ E acaba quase a chorar de
ternura sobre o que tolerou!/ Ah, tudo isto é belo, tudo isto é
humano e anda ligado/ Aos sentimentos humanos, tão conviventes e
burgueses,/ Tão complicadamente simples, tão metafisicamente
tristes!/ A vida flutuante, diversa, acaba por nos educar no
humano./ Pobre gente! Pobre gente toda a gente!”
Alain Badiou considera a Ode Marítima um dos
maiores poemas do século XX. No entanto, para este filósofo é
“impossível – e contudo real – que povos notoriamente orgulhosos da
liberdade individual, da privacidade, dos direitos do cidadão e do
homem, da singularidade e dos particularismos, se tenham
transformado em pouquíssimo tempo numa massa de ovelhas,
controlados, vigiados, espiados, monitorizados em toda a sua
actividade através de uma tecnologia invasiva e lesiva da descrição
e da delicadeza, tratados como malfeitores e terroristas potenciais,
enlatados em meios de transporte semelhantes a carne de animal,
frustrados, presos e misturados com a má educação generalizada,
vexados pelo software que não prevê excepções, obrigados a uma vida
programada nos mínimos detalhes e que elimina qualquer experiência
do poético, que não deixa espaço para a meditação e para a
elaboração da experiência, submersos por um cúmulo de idiotice e por
uma publicidade asfixiante”.
3. Invocando direitos humanos inalienáveis, umas
vezes reclamamos o reconhecimento da singularidade de cada pessoa
contra todas as formas de massificação. Outras, exigimos sistemas de
vigilância e segurança que não permitam a preparação e o
desenvolvimento de programas de destruição, como o realizado na
Noruega. A sabedoria das nações ainda não consegue compaginar esta
dupla exigência e, também, não pode prescindir de a procurar
simultaneamente.
Não há soluções definitivas. Não se pode impor a
ninguém que se torne o guarda da dignidade do outro. Já conhecemos,
no entanto, a diferença entre os frutos da cultura do ódio e da
cultura do amor. Até Setembro.
(1) Sobre a importância da obra de Frei José
Augusto Mourão, ver: Ana Cristina da Costa Gomes/José Eduardo Franco
(coord.), Dominicanos em Portugal. Homenagem a José Augusto Mourão,
Alêtheia, Lisboa, 2010.
(2) Manuel de Almeida Trindade, Urbano Duarte,
primeiro volume, Gráfica de Coimbra, 1989, pp. 291-292. |