Bento Domingues - Triplo II: O blog do TriploV - Revista TriploV de Artes, Religiões e Ciências
 
 
 
 
 
 

BENTO DOMINGUES, op

O outro somos nós

Frade da Ordem dos Dominicanos, teólogo, professor, escritor

Público, 17 de Julho de 2011

 

1. Roubei este título, ou antes subtítulo, ao último texto do dominicano José Augusto Mourão (1947-2011), publicado nos “Cadernos ISTA” (nº 23), revista da qual era director desde 1997 (1). Tanto esse número como esse texto admirável encerram um ciclo. Pedem uma pequena genealogia. Com a colaboração de vários professores estrangeiros, os Dominicanos criaram, em 1952, o Studium de Filosofia e Teologia, Sedes Sapientiae, em Fátima, aberto a outras congregações religiosas. Com os mesmos professores, em 1954, foi criado o Instituto S. Tomás de Aquino (ISTA), começando as suas actividades por um Curso de Verão de Teologia, com duração de três semanas em três anos, destinado a religiosas, educadores da juventude e, mais tarde, aberto aos leigos. Foi uma iniciativa pioneira e teve um grande e prolongado êxito. Entretanto, nasceram, em 1965, os Encontros Teológicos, no Porto e em Coimbra. Destes, fala o Dr. Urbano Duarte, então, director do Correio de Coimbra: “Uma comissão de leigos incentivou a realização deste III Encontro de Teologia para Leigos, a cargo do Instituto de S. Tomás dos Padres Dominicanos de Fátima (…). Mais uma vez, foi impressionante e, podemos dizer, novo, o êxito alcançado. Nada em Coimbra se lhe pode comparar, em matéria de cultura religiosa: os conferencistas, muito bem preparados e expondo aspectos teológicos actualizados; os ouvintes, às centenas, com predomínio de estudantes universitários; entre a assistência, muitos que em salões caracteristicamente confessionais não costumam entrar; na exposição evidencia-se a sinceridade, o tom franco é por vezes cáustico para mais claro contraste de interpretações; o mesmo também nas questões postas para diálogo. A sobriedade melíflua, o ‘santo engano’, ou a paz morta à sombra da ignorância não tiveram assento nestas assembleias de reflexão sobre a Fé” (2).

As aulas do Curso de Verão eram policopiadas e distribuídas pelos alunos. A partir de 1996, os Cadernos ISTA tornaram-se o meio de ampliar a audiência destes cursos, assim como o debate que eles pretendiam instaurar.

Frei José Augusto Mourão, em parceria com outras instituições científicas e com equipas que soube reunir, assumiu, no âmbito do ISTA, algumas das tarefas do Instituto Histórico Dominicano, organizando vários e importantes congressos e colóquios a nível nacional e internacional como, por exemplo, o Congresso sobre a Inquisição.

 

2. Quando referi que roubei o título desta crónica ao subtítulo do último texto do meu confrade, é porque o título é mais vasto e algo programático: “Um entre os outros: à escuta do outro”.

Para quem pode, as férias são tempo de viagens, da ilusão do encontro com o outro. Hoje, já não é preciso viajar para encontrar as mais diversas gentes. José Augusto introduz o seu texto com um fragmento da Ode Marítima, de Álvaro de Campos: “As viagens, os viajantes – tantas espécies deles!/ Tanta nacionalidade sobre o mundo! Tanta profissão!/ Tanta gente!/ Tanto destino diverso que se pode dar à vida,/ À vida, afinal, no fundo sempre, sempre a mesma!/ Tantas caras curiosas! Todas as caras são curiosas/ E nada traz tanta religiosidade como olhar muito para gente./ A fraternidade afinal não é uma ideia revolucionária./ É uma coisa que a gente aprende pela vida fora, onde tem que tolerar tudo/ E passa a achar graça ao que tem de tolerar,/ E acaba quase a chorar de ternura sobre o que tolerou!/ Ah, tudo isto é belo, tudo isto é humano e anda ligado/ Aos sentimentos humanos, tão conviventes e burgueses,/ Tão complicadamente simples, tão metafisicamente tristes!/ A vida flutuante, diversa, acaba por nos educar no humano./ Pobre gente! Pobre gente toda a gente!”

Alain Badiou considera a Ode Marítima um dos maiores poemas do século XX. No entanto, para este filósofo é “impossível – e contudo real – que povos notoriamente orgulhosos da liberdade individual, da privacidade, dos direitos do cidadão e do homem, da singularidade e dos particularismos, se tenham transformado em pouquíssimo tempo numa massa de ovelhas, controlados, vigiados, espiados, monitorizados em toda a sua actividade através de uma tecnologia invasiva e lesiva da descrição e da delicadeza, tratados como malfeitores e terroristas potenciais, enlatados em meios de transporte semelhantes a carne de animal, frustrados, presos e misturados com a má educação generalizada, vexados pelo software que não prevê excepções, obrigados a uma vida programada nos mínimos detalhes e que elimina qualquer experiência do poético, que não deixa espaço para a meditação e para a elaboração da experiência, submersos por um cúmulo de idiotice e por uma publicidade asfixiante”.

 

3. Invocando direitos humanos inalienáveis, umas vezes reclamamos o reconhecimento da singularidade de cada pessoa contra todas as formas de massificação. Outras, exigimos sistemas de vigilância e segurança que não permitam a preparação e o desenvolvimento de programas de destruição, como o realizado na Noruega. A sabedoria das nações ainda não consegue compaginar esta dupla exigência e, também, não pode prescindir de a procurar simultaneamente.

Não há soluções definitivas. Não se pode impor a ninguém que se torne o guarda da dignidade do outro. Já conhecemos, no entanto, a diferença entre os frutos da cultura do ódio e da cultura do amor. Até Setembro.

 

 

(1) Sobre a importância da obra de Frei José Augusto Mourão, ver: Ana Cristina da Costa Gomes/José Eduardo Franco (coord.), Dominicanos em Portugal. Homenagem a José Augusto Mourão, Alêtheia, Lisboa, 2010.

(2) Manuel de Almeida Trindade, Urbano Duarte, primeiro volume, Gráfica de Coimbra, 1989, pp. 291-292.  

   
 

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