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Se a poesia é a única prova concreta da existência do ser humano
como humano, a música é a alma de toda a poesia, presente, aliás, no
ritmo de todas as artes que verdadeiramente o sejam. Como linguagem
suprema da transcendência humana, rasga o tecto do mundo, expõe-se
ao sopro divino, religação do céu e da terra.
M.S. Lourenço sustenta, nos Degraus do Parnaso, que a
Literatura, entendida como incluindo a poesia e a prosa, tem a
tarefa de nos levar até à fronteira do inexprimível. Para ele, o
problema subjacente consiste em que a linguagem, de que a Literatura
é a Arte (no sentido em que a Música é a arte do som), funciona
dentro de limites que não podem ser ultrapassados. Isto leva a que a
linguagem não seja capaz de representar completamente todo o âmbito
da experiência. Existe, assim, uma parte da experiência que não é
representável linguisticamente, logo literariamente.
Este poeta chama inexprimível a este domínio da experiência
linguisticamente inacessível. A grandeza relativa da arte da
linguagem pode-se, justamente, medir pela sua capacidade de levar o
leitor à intuição desse domínio, embora dele não possa ser
feita qualquer discrição. O verdadeiro artista é aquele que
encontrou a expressão simbólica da experiência transcendente.
Por este caminho, M.S. Lourenço colocou a questão das fronteiras
entre a Literatura e a Religião. Tem defendido a ideia de que o
culto religioso não existe incondicionalmente e que a
expressão da experiência religiosa é condicionada pela
formulação literária que a descreve, uma vez que esta é o veículo da
asserção religiosa. Neste sentido, uma doutrina religiosa é apenas
tão verdadeira quanto o for a fórmula literária que a transmite.
2.
Dir-se-á que uma teoria dessas é boa para académicos discutirem, mas
sem alcance prático numa celebração litúrgica, que não é nem uma
tertúlia nem um concerto.
A Igreja dispõe, para as suas celebrações sacramentais, de livros
litúrgicos editados pelas autoridades competentes, de princípios
doutrinais, de normas e rubricas muito claras para a sua execução
Além disso, há liturgistas especializados e zeladores das
orientações da pastoral litúrgica. Está tudo previsto, mesmo as
adaptações possíveis. Basta abrir o livro e olhar para as rubricas a
observar escrupulosamente. Acontece que a celebração viva de uma
comunidade não pode ser substituída por um arranjo de enlatados
prontos a servir.
Existem, graças a Deus, muitas e variadas realizações que saltam
para fora deste esquema, sem cair na banalidade.
3.
Noto, no entanto, que os cuidados com a dignidade e criatividade
litúrgicas estão centradas na construção e renovação dos espaços, as
chamadas novas igrejas, empreendimentos em que se gastam milhões.
Não sou contra a arquitectura religiosa de grande qualidade. Pelo
contrário. Gostaria que, na linha da renovação da arte sacra,
orientada pelos dominicanos A. Couturier /P. Regamey, com muitos
outros, se apostasse sempre no “génio”.
O que me espanta é o pouco investimento, sobretudo o pouco cuidado,
com a construção de uma comunidade e com as suas diversas expressões
culturais da Fé. Valeria a pena comparar o que uma paróquia gastou e
gasta com os seus espaços litúrgicos e o que gasta, por exemplo, com
a atracção e formação de grupos corais, verdadeiramente criativos,
que ajudem a configurar os sonhos mais profundos da comunidade, em
celebrações que a exprimam e a transfigurem. Não se trata de reduzir
tudo à música. Sem preparação bíblica é impossível fazer a ponte
hermenêutica entre textos, rituais, acções litúrgicas e a vida
concreta da semana onde a maioria das pessoas gasta a maior parte do
seu tempo.
A arte da celebração é a convergência de muitas artes. Uma
celebração não é conseguida quando é um grande espectáculo, mas
quando carrega e desata as energias interiores de cada um e faz
sonhar com novos céus e nova terra. O Advento está carregado de
textos poéticos, de histórias espantosas, de apelos a não nos
deixarmos abater pelos dias sem horizonte. O cristão que vai à
celebração dominical vai para refazer a alma no fundamento da
esperança que não engana.
Das muitas pessoas que “vão à Missa”, a escolha depende dos motivos
mais diversos: umas por causa da qualidade da homilia, outras por
causa da qualidade do canto, algumas até para participar em mais um
sacrifício, etc…
A presença do Amor – acolhido ou recusado – percorre o quotidiano da
nossa vida. As celebrações da liturgia, nas linguagens da beleza,
existem para não se perder a consciência e a memória do que,
misteriosamente, sempre acontece e esquecemos, distraídos do
essencial donde brotam os sonhos e a Alegria. |