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Ao longo dos últimos duzentos anos, a exegese histórico-crítica do
Novo Testamento passou por diversas fases, na procura da identidade
de Jesus. Depois de um período de desalento, as investigações do
contexto económico, social, cultural, religioso e político em que
Jesus nasceu e cresceu, desenhavam a sua identidade a partir das
rupturas com esse mundo. A “terceira vaga” de estudos
concentra-se no que há de mais óbvio, embora pouco sublinhado: Jesus
é um judeu da Palestina, mais ou menos marginal, dentro de um
judaísmo em crise, com várias tendências e grupos (saduceus,
fariseus, zelotas, essénios terapeutas, baptistas, etc.), sob
ocupação romana.
Alguns temas e figuras desse judaísmo agitado – mestre (rabino),
profeta, pregador apocalíptico, terapeuta, etc., – surgem como
índices de continuidade e de afinidade de Jesus com certas correntes
do seu tempo. Se antes predominava uma identidade de Jesus
construída a partir das suas rupturas, esta tende agora a diluir-se,
sem que seja possível perceber porque razão foi Ele morto pelo poder
romano, mas, aparentemente, para serenar clamorosas exigências
judaicas. O que haveria de insuportável nesse Nazareno?
Em vez do paradigma do pêndulo - passagem de um extremo ao outro -,
ignorando a resistência da realidade nas suas diversas expressões, é
preferível insistir no modelo dialéctico do tear que integra sempre
os extremos no tecido de novas sínteses. É em continuidade com a
tradição, sempre problematizada, que Jesus introduz uma novidade na
aventura humana, que cada vez me espanta mais e que encontramos nas
narrativas dos Evangelhos, que mostram as suas múltiplas
manifestações.
2.
S. Paulo procurou sintetizar essa novidade, que recebeu dos
discípulos de Jesus, mas que ele sempre reivindicou como experiência
própria da presença da graça do Ressuscitado.
Numa dessas sínteses de descompartimentação do mundo, tem uma
expressão lapidar: Com Jesus Cristo não há separação entre judeu e
grego, escravo e livre, homem e mulher (Gl.3.28). Podemos, hoje,
observar muitos outros muros, construídos e em construção que, por
fidelidade ao Evangelho, é preciso denunciar e abater.
Chegámos ao século XXI como herdeiros, pouco agradecidos, dos
valores da modernidade: liberdade, igualdade, fraternidade e
laicidade. Parecem-me indiscutíveis as suas raízes cristãs, embora
dentro e fora da Igreja, mesmo depois da Declaração dos Direitos
Humanos, esses direitos continuem mais invocados do que praticados.
Pode-se perguntar: se Jesus não tinha nenhum programa económico,
financeiro e político de conquista e exercício do poder, porque
razão inquietou tanto a sociedade do seu tempo? Anunciava a
proximidade do Reino de Deus, de um Deus que nunca ninguém viu.
Era, no entanto, a sua experiência e convívio com o Mistério
inabarcável que O impedia de olhar “só para cima”. A sua experiência
de Deus impunha-lhe “olhar para o lado”, para os excluídos do
convívio humano, por razões religiosas, económicas, culturais ou
políticas. A sua fé, a sua oração e os seus retiros não lhe fechavam
os olhos. Abriam-no para as alegrias e sofrimentos do mundo.
3.
O clero tinha sempre as homilias desta época mais ou menos prontas.
Além de outros temas óbvios, o que nunca podia faltar era a denúncia
do Natal consumista, nem sempre a despropósito. Este ano - para o
próximo prometem pior -, só por um grande sentido de humor negro é
que essa pregação poderia fazer sentido.
Somos acusados de ter vivido acima das nossas possibilidades. Creio
que nem todos. Alguns, percentualmente poucos, são tão ricos que só
conseguem viver abaixo das suas possibilidades. Seja como for, João
Baptista, o austero e pregador de austeridade, desencorajou o
próprio Jesus Cristo que escolheu outro caminho. Ele veio para que
“tivéssemos vida e vida em abundância”.
Faz hoje 50 anos da convocatória do Concílio do Vaticano II, a
grande revolução traída da Igreja do século XX. A Gaudium et Spes,
(nº 69), lembra o que a civilização, em que vivemos, despreza:
“Deus, destinou a terra e tudo o que ela contém para uso de todos os
seres humanos e de todos os povos, de sorte que os bens criados
devem chegar, equitativamente, às mãos de todos, segundo a regra da
justiça inseparável da caridade”, da gratuidade do amor. Esta
globalização é um bocado diferente daquela a que assistimos. Esta
deixa quase tudo em mãos de poucos. Cava o abismo crescente entre
ricos e pobres. Há cinco séculos, Frei António de Montesinos, O.P.,
de olhos postos nos Índios, explorados e dizimados, perguntava do
púlpito aos seus conterrâneos exploradores: “E estes não são
Homens?” Parece que nem Jesus Cristo nem Montesinos eram
extra-terrestres.
Boas Festas.
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