|
A exegese bíblica, propriamente dita, só começa em finais do século
XV, com o judeu português Isaac Abravanel (1437-1508). O Humanismo,
com a exigência de crítica textual e regresso às fontes, a Reforma,
com a Bíblia como única autoridade, e o Concílio de Trento, tentando
responder a esses desafios, resultaram numa espécie de explosão de
exegese científica cristã no século XVI. Estudam-se a fundo as três
línguas bíblicas: hebraico, aramaico e grego.
As ordens religiosas, antigas e recentes, a reforma da Universidade
de Coimbra e a criação da nova Universidade, em Évora, conjugaram-se
com o esplendor da expansão e da política cultural de D. João III.
Os dominicanos António da Fonseca e Francisco Foreiro foram
bolseiros do Piedoso no Colégio de Santa Bárbara, em Paris. O
intercâmbio internacional era, aliás, enorme. Por exemplo, o
primeiro grande exegeta português, Frei Jerónimo de Azambuja, O.P.
(?- 1563), é, em parte, produto de Lovaina, como será mais tarde o
confrade Frei Luís de Sotomaior (c. 1526-1610) e outros.
2. Para a exegese bíblica, a viragem para o século XVII, apesar de
pujante, já não tinha o fulgor da exegese quinhentista portuguesa. A
culpa só não vai toda para o mal interpretado decreto conciliar de
Trento, que impunha a Vulgata, por coincidir com o declínio político
e cultural português. Em todo o caso, esfuma-se ou desaparece o
apego ao original hebraico e às reflexões dos rabinos, para
regressar à Vulgata e aos comentários dos Padres da Igreja.
Daí que, a partir de meados do século XVII e seguintes - não só em
Portugal - se acentue a decadência. A exegese portuguesa, que
agonizava há mais de um século, recebeu o golpe fatal com a extinção
da Faculdade de Teologia da Universidade de Coimbra (1910). Extinta
a última chama institucional, iria levar tempo a notar-se, em
Portugal, o renascimento dos estudos bíblicos.
3. Como diz Frei Francolino, foi preciso esperar pelo fim do século
XIX para que os católicos procurassem retomar o estudo
histórico-crítico da Bíblia. A fundação da École Pratique d’ Études
Bibliques, por J. M. Lagrange, O.P., em Jerusalém (1890),
inscreve-se nesta corrente. Ainda que tenha sido encorajada pela
encíclica Providentissimus Deus, de Leão XIII (1893), a
adopção desta exegese provocou na Igreja Católica uma crise grave
que durou todo o pontificado de Pio X (1903-1914) e o começo do
pontificado de Bento XV (1914-1922). A encíclica Divino afflante
Spiritu (1943), de Pio XII, reconheceu a necessidade da exegese
histórico-crítica, mas só passados mais de 20 anos, depois do
Concílio Vaticano II, é que os exegetas católicos se sentiram
verdadeiramente livres.
Desde as suas origens, a exegese cristã era confessional, ditada
pela tradição e situada sob a autoridade do Magistério. Ao romper
com essa concepção, a exegese crítica centra toda a sua atenção no
texto bíblico, procurando o seu sentido, por meio de um estudo
segundo as regras da crítica textual, da filologia e da história.
Tem por única autoridade a razão.
Os pioneiros da exegese crítica não duvidavam que a Bíblia fosse
expressão da Palavra de Deus, mas acreditavam também que ela tomou a
forma de palavras plenamente humanas, único acesso à Palavra Divina.
A situação só mudou no decurso dos últimos anos. Reconhecida como um
elemento do património cultural da humanidade, a Bíblia tornou-se
objecto de estudo mesmo no quadro de instituições e por parte de
pessoas que se situam fora de qualquer horizonte religioso.
Esta exegese é acusada, com frequência, de cavar um "abismo" entre
os seus resultados e as exigências da vida cristã, provocando uma
"distanciação objectivante" (Gadamer). Para Francolino Gonçalves,
esta distanciação pertence à própria natureza da exegese
histórico-crítica. Estuda os textos bíblicos como estudaria qualquer
outro texto antigo, sem olhar para o estatuto religioso que os
cristãos, os judeus e mesmo os muçulmanos lhe reconhecem. O exegeta
cristão, ou judeu, usando um grande número de disciplinas, põe,
provisoriamente, entre parêntesis a sua fé e deve tomar o máximo de
precauções para não projectar as suas próprias ideias sobre o texto
e para as não confundir com a Palavra de Deus.
Esta é, no entanto, para o exegeta cristão, apenas a primeira etapa.
Deve ser seguida de uma segunda que consiste na apropriação do
sentido dos textos e na sua actualização. Esta é a função da
hermenêutica. Ao fazê-lo, o hermeneuta cristão fará obra de teólogo
e de pastor.
Mas esta questão fica adiada para outra oportunidade. |