Mapa do Sítio - Triplo II: O blog do TriploV - Jorge Lima Barreto
 
 
 
 
 
   

 

 
JORGE LIMA BARRETO
   
  O JORGE
Por Vítor Rua
   
 

"Não ouvi e não gostei". 

Esta frase, dita por uma pessoa qualquer, pode parecer pretensiosa, reaccionária, injusta. Quando proferida por Jorge Lima Barreto, tinha a ver com gosto e tempo. Para quê perder tempo a ouvir a chamada música gastronómica? (como chamava Umberto Eco à Muzak). Ele sabia o que era "bom" e o que era "mau". Tinha "faro" para essas coisas. Assim, tempo a escutar "má" música, era tempo perdido. Depois vem o gosto. O Jorge só ouvia o "melhor"! O melhor jazz, o melhor rock, as melhores música electrónica, concreta, acusmática; a melhor música espectral; as melhores músicas etnográficas; a melhor música clássica ou contemporânea. "Melhor" para Jorge Lima Barreto, era o mínimo múltiplo comum.

Apropriando-nos com criatividade de uma citação de Zappa, diríamos que falar sobre Jorge Lima Barreto é como dançar sobre arquitectura. Como descrever em palavras toda a genialidade criativa do Jorge?

Uma palavra que surge incessantemente ao descrevermos o seu percurso musical é "pioneiro". O Jorge foi pioneiro até ao fim. Foi pioneiro no uso do sintetizador em Portugal. O seu LP Anarband, com Rui Reininho, é o primeiro disco de música experimental em Portugal. Encounters, com Saheb Sarbib, é o primeiro disco em que se cruzam as músicas jazz e electrónica. Em 1981 - faz agora 30 anos - cria comigo os Telectu, onde fomos pioneiros na introdução da música minimal repetitiva em Portugal. Aliás o termo música minimal-repetitiva, é invenção sua. É a única língua em que melhor se descreve determinado tipo de música. No inglês temos minimal music, e no francês musique répétitive. Mas o problema é que existe música minimal não-repetitiva, e existe música repetitiva não-minimal. E o Jorge reparou isso e corrigiu a terminologia existente, tornando-a mais exacta. Procedimento de um musicólogo activo. Em 2008, cria com o jovem e talentoso músico Jonas Runa o projecto Zel Zelub, onde pretendeu fundir de forma pioneira o som acústico do seu piano, à electrónica sensível de Jonas Runa, evitando sempre, qualquer conotação com a chamada música de laptop.

Como musicólogo, escreveu sobre, jazz, que é o primeiro livro de jazz em Portugal; escreve sobre rock e droga; pioneiro - como vimos - a escrever sobre música minimal-repetitiva; escreveu sobre música concreta, electrónica, contemporânea erudita; música de dança; música improvisada. Sempre de forma original e pioneira. Deu conferências em todo o mundo. Do Brasil à U.R.S.S.. Viu-o em Moscovo, vestido de talhante de Praga, com medalhas douradas metálicas, a dar uma conferência em que estavam presentes, o compositor do Tarkovsky, Artmiev, e o musicólogo russo Dimitrov. Na China, em Beijing, deu uma conferência para estudantes de música do conservatório. O Jorge falava e todos hipnotizava com o seu saber e humor.

Foi - mais uma vez - pioneiro na concepção e realização de música para performance, teatro, instalações, pintura, poesia, vídeo-arte, cinema, onde trabalhou com artistas como Ernesto de Sousa, Ernesto Melo e Castro, António Barros, Luís Miguel Cintra, Eugénio de Andrade, Luís Camacho ou António Palolo.

Como músico, e com os Telectu, toca e grava com os maiores músicos internacionais de música jazz, improvisada e contemporânea. Nomes como Chris Cutler, Elliott Sharp, Jac Berrocal, Louis Sclavis, Evan Parker, Daniel Kientzy, Giancarlo Schiaffini. Só olhando a bateristas temos o Sunny Murray, o Eddie Prevóst, Gery Hemingway, Barry Altschul, Paul Lytton, Han Bennink... Está aqui toda uma História da bateria. E não era o Jorge que se integrava na musicalidade dos outros músicos, mas sim o contrário: ele sempre era o impulsionador de novas e estranhas ambiências ou paisagens sonoras variegadas.

Como pedagogo, era ímpar. Não tinha escola ou alunos porque todos aprendíamos com tudo o que ele dizia e nos mostrava. O Jorge mudou a vida de muitos nós para melhor: para um novo mundo sónico. António Pinho Vargas ou Rão Kyao - no jazz - foram dois músicos, para quem Barreto foi fundamental na sua aprendizagem do jazz. Eu e o Nuno Rebelo (do rock), fomos outros dois. E tantos outros, antes e depois destes citados. Mas Jorge Lima Barreto não nos ensina a tocar como ele ou a pensarmos como ele. O Jorge ensina-nos a criarmos e desenvolvermos a nossa própria gramática e sintaxe: a nossa linguagem musical. Tal como Monk, Barreto não é imitável. O seu estilo, quer nos sintetizadores e samplers, quer no piano de cauda, é idiossincrático. A sua maneira de raciocinar a música é não-linear. O Jorge é livre e musical, tal como um rouxinol. Livre, porque sempre fez e lutou por fazer o que queria. E transmitia-nos essa sua força. Incentivava-nos a fazermos o mesmo. A não prostituirmos a nossa arte. E a referência à ordem zero do físico Markov, vem do facto de o Jorge saltar de um livro para outro, ou de um disco para outro, aparentemente sem qualquer relação entre eles, e onde a intenção é a de a um evento, acrescentarmos um outro, e mais outro, só pelo simples facto de que são belos e auto-suficientes.

Para o Jorge, erro e caos, eram o seu segundo nome: estava em casa. Criava sistemas musicais onde através de um aparente caos, deixava de existir o erro. Assim, todas as acções musicais por ele executadas em tais sistemas, não continham o erro. 

"Novo expressionismo". Era como Salvatore Sciarrino designava ao novo tipo de virtuosismo como o que Jorge nos presenteava. Um virtuosismo tal, que nos parecia "fácil", "simples", "errático", "débil", enfim, tudo adjectivos não abonatórios, ao que na realidade era precisamente o contrário: a simplicidade que gera a complexidade; a originalidade ou identidade; gestos revolucionários; técnicas inovadoras. Sweet violence.

Recorria muitas das vezes, ao uso de auto-colantes nas teclas dos teclados, para criar partituras visuais, que muitas vezes só ele parecia entender. E escrevia meticulosamente os parâmetros dos sintetizadores, para que mais tarde ele ou alguém interessado na execução daquela obra, a pudessem interpretar de novo. Ordem no Caos.

O seu jornalismo musical era sempre do mais alto nível e sempre corrosivo e revolucionário. Pioneiro na crítica musical, no anunciar de novas ideias e de novas músicas. Na rádio, com Rui Neves, cria os "Musonautas", programa mítico, que esteve no ar uns 20 anos e termina pela política do "mete o cartucho". Em Macau tem o programa XXXXX.

Os milhares de concertos efectuados em todo o mundo, da China ao Brasil, de Cuba a Hong Kong, de Nova Iorque à Rússia, e quase toda a Europa, nos melhores Festivais, e com os melhores músicos, fazem de Jorge Lima Barreto uma figura ímpar no panorama musical português, só comparável a um músico como Carlos Zíngaro.

As suas caricaturas BD, são conhecidas por amigos íntimos e são de uma qualidade fabulosa de sarcasmo, humor, sátira contundente.

Um dia normal na vida do Jorge, podia ser acordar às seis da manhã para ir escrever e assim ficar até às onze e quarenta e cinco, altura em que se preparava para sair para almoçar ao meio-dia em ponto. Uma dose para dois. Depois de almoço uma visita às escadinhas do Duque para ver e comprar umas BD´s. Regressa pelas quinze horas e regressa à escrita. Sempre a ouvir música. Ensaio com Telectu das dezassete às dezanove. Jantar. Depois do jantar, um improviso no piano. Depois audição musical (muitas das vezes jazz).

A sua enciclopédica sapiência, fazia com que num momento estivesse a falar de fractais, como a seguir nos falava de vídeo-arte; uma conversa que começasse por se discutir a ópera, podia terminar com uma análise à música dos cantos sussurrados do Burundi; abordar a dromologia  de Paul Virilio, e logo de seguida falar da entrevista que fez a Frank Zappa.

O Jorge nunca se acomodou, nunca andou a pedir pelos gabinetes do Estado, nunca recebeu apoios, tudo o que fez foi por ele conquistado. E é difícil fazer-se o que ele fazia, o que ele dizia, o que ele representava, e conseguir-se ser-se ouvido. E, muitas das vezes era silenciado. 

Contam-se pelos dedos as entrevistas ao Jorge Lima Barreto nos média. As aparições em televisão contam-se pelos dedos de uma mão. O Jorge não alinhava em playback´s, nem em "palhaçadas" como ele chamava à generalidade dos programas de TV ou de Rádio. Eram raras as excepções. Na rádio o António Sérgio e a Ana Cristina e na televisão o Júlio Isidro. Nos jornais, respeitava e era amigo do António Duarte (no início jornalista do jornal Sete, e depois também como músico do seu duo D.W.Art.

É amigo e faz música (com os Telectu), para quase todos os grandes performers portugueses: Manoel Barbosa, Silvestre Pestana, Fernando Aguiar, Rui Orfão, Carlos Gordilho, Elizabete Mileu e muitos outros.

São precisos 30 anos para o Jorge tirar o Doutoramento, depois de diversas peripécias. Estava agora a entregar o seu projecto de Pós-Doutoramento. Um lado académico nada convencional e até de guerrilha.


 

Vítor Rua

   
   
   
   
   
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