Mapa do Sítio - Triplo II: O blog do TriploV - Jorge Lima Barreto
 
 
 
 
 
   

 

 
JORGE LIMA BARRETO
   
   

Música e heterodoxia 
Por Mário Vieira de Carvalho

 

  

 

Heterodoxia como atitude permanente, como uma espécie de programa de vida, é a noção que me ocorre para situar Jorge Lima Barreto (1949-2011). Como músico, posicionava-se na terra de ninguém: nem jazz, nem world music, nem “música contemporânea” (como produto de high culture ensinada nas universidades ou escolas superiores), nem qualquer outro género que pudesse facilmente etiquetar-se. Ele próprio se declarou músico minimal, trabalhando com material rarefeito, reduzido nos seus “parâmetros” a alguns elementos essenciais. Entusiasmava-se com as “ínfimas transições” – não tanto no sentido em que Adorno delas fala a propósito de Alban Berg, e que encontramos também na obra de Jorge Peixinho – mas mais numa outra dimensão de tempo: o tempo longo do aparentemente estável mas em constante metamorfose. Música minimal repetitiva: sem dúvida inspirada em Steve Reich e noutros “repetitivos” norte-americanos, mas mais livre, não “escrita”, ou não-vinculada a um programa preestabelecido.

Associado no Telectu a Vítor Rua e tocando com músicos famosos um pouco por todo o mundo (músicos de diferentes géneros, estilos e culturas, com quem, graças à sua versatilidade, o grupo facilmente se fundia), Jorge Lima Barreto tinha em mente a “obra aberta” no sentido mais radical do termo. Digo radical, para distinguir as suas performances do conceito de “obra aberta” de Umberto Eco, cujo paradigma era a Klavierstück XI de Stockhausen. Não se tratava de permutações mais ou menos aleatórias de material pré-composto e fixado em partitura, mas sim de improvisação: isto é, jogo de parada e resposta a partir das sugestões do material, em diálogo com os seus parceiros de comunicação. Uma viagem com elementos de orientação, mas sem rota, de duração mais ou menos imprevisível.

“Nova música improvisada” será, por isso, a “etiqueta” que lhe está mais próxima, significando a tentativa de escapar à prisão da notação e recuperar aquilo a que, em propriedade, se podia chamar a espontaneidade do “impulso mimético”: aquilo que o ensino académico da música, não raro, se encarrega de liquidar.

Jorge Lima Barreto não parou de escrever sobre música, e aí também heterodoxamente. Poucos estavam tão bem informados como ele da pulsação do novo na música do nosso tempo. Mas a sua abordagem ensaística era tão pouco académica quanto a sua maneira de fazer música.

O seu último projecto de livro, que não chegou a concretizar, mostra a singularidade do seu quadro de referências. Era um conjunto de entrevistas com músicos dos últimos cinquenta anos e das mais diversas gerações, desde os que se encontram na casa dos trinta aos que já ultrapassaram os oitenta anos: Sylvano Bussotti, Brian Ferneyhough; Helmut Lachenmann, Salvatore Sciarrino, Pauline Oliveros, Gottfried Michael Koenig, Pierre Henry, John Taverner, Einojuhani Rautavaara, François-Bernard Mâche, Joelle Léandre, Toshi Ichianagi, Ornette Coleman, John Zorn, Brian Eno, La Monte Young, Murray Schafer, Michel Fano, João Pedro Oliveira e Pedro Carneiro. Teatro musical, multimedia, “economia política da música”, música concreta, electrónica e live electronics, diversas tendências do experimentalismo, filosofias e espiritualidades várias, jazz, interculturalismo – eis o caleidoscópio de perspectivas que Lima Barreto se preparava para colocar em diálogo umas com as outras através dessa colecção de depoimentos de vinte compositores vivos. Estilhaços das “grandes narrativas”. A condição pós-moderna que, na música, ele encarnou.

 

Publicado originalmente no «Público», 19 de Julho de 2011

   
   
   
   
   
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