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Recorda-se dos mortos o que foram e o que
poderiam ter sido. Disso falarão os que o conheceram na dimensão de
musicólogo, estudioso, compositor, intérprete. Falo do ser humano
que conheci, das gargalhadas estrepitosas que traçámos no ar, a sua
língua viperina a poupar poucos, mesmo aqueles de quem de facto
gostava muito. Lutou até ao fim pela causa da contemporaneidade na
música, convocando para isso saber e sobretudo emoção. A sua casa
era a continuação da sua discoteca e da biblioteca. E dos gatos.
Cheguei até ele no tempo dos Telectu, com Vítor Rua. Foi tudo
através da Ana Bárbara. O que o tempo separou não desuniu o que nos
ligava. Diferentes em quase tudo, a vida proporcionou-nos o traço
comum. Depois, a tragédia atingiu-nos por razões diversas. Fomos
espaçando encontros. Vi-o de relance por vezes, olhava sempre para
as janelas abertas na Rua da Imprensa Nacional e fantasiava a sua
presença ali. Um destes dias telefonou-me o Vítor a chorar.
Encontrei-o no hospital, entre a música tremenda de tudo quanto lhe
auxiliava o andamento final. Ficou o remorso do tempo perdido a
alegria do tempo vivido. |