Mapa do Sítio - Triplo II: O blog do TriploV - Jorge Lima Barreto
 
 
 
 
 
   

 

 
JORGE LIMA BARRETO
   
   
   
UM ENCONTRO COM A MÚSICA VISUAL DO JORGE LIMA BARRETO
Por  Jorge Pais de Sousa
 

  

 

            Pediu-me o António Barros para escrever um texto sobre o Jorge Lima Barreto. E este só pode ter um carácter de depoimento pessoal, pois não faço parte do círculo restrito de amigos que tiveram o prazer de o conhecer e de com ele conviver, além de não ser musicólogo.

            Neste contexto, o que posso dizer de válido sobre o Jorge Lima Barreto (1949-2011) desaparecido tão cedo e de forma tão brusca do nosso convívio? Lembrei-me de escrever sobre as circunstâncias concretas em que cheguei à sua música.

            Encontro que apenas teve lugar o ano passado e decorreu sempre no registo afectivo da amizade cúmplice.

Com efeito, a 20 de Março, participei na inauguração da instalação Águas Vivas, do Silvestre Pestana (Funchal, 1949), que esteve patente ao público no Museu da Água de Coimbra, inserida numa iniciativa comissariada pelo António Barros (Funchal, 1953).

            As pessoas que na altura visitaram este espaço expositivo eram confrontadas e sugestionadas, em termos visuais e sonoros, com uma ambiência de tipo aquático. É que a fenomenologia da percepção da instalação Águas Vivas desvelava uma arquitectura de cinco grupos escultóricos de néones lineares esculpidos em diagonal. Estes, por sua vez, estruturam-se em triângulos, cujos tons de luz azul são amplamente difundidos pelo espaço circundante. Ao fundo, e do lado esquerdo do vão branco de parede, dispunha-se na vertical um jogo de oito lâminas de espelho de diferentes tamanhos. A delimitar a instalação, a montagem incluía o alinhamento de vários painéis de vidro que constituem uma “fronteira” de blindagem para a alta tensão de energia eléctrica difundida pelos néones e, em simultâneo, uma superfície vítrea, transparente e translúcida, para se ver a escultura. O resultado obtido é o de que a luz em néon, o elemento conceptualmente estruturante da instalação, é fractalmente difundida, reflectida e multiplicada por toda a sala, através das diferentes superfícies de espelho e de vidro. É também a luz que sugere a sensação lúdica, algo ambígua e até paradoxal, de estarmos em espaço urbano e, ao mesmo tempo, de se percepcionar um ambiente aquático artificial no qual supostamente as águas vivas, a designação comum madeirense para as medusas, proliferam e apelam ao silêncio da profundidade aquática.

            Por entre esta sensação ambígua de espaço, ecoava a extraordinária e serena música electroacústica do álbum Neo Neon, do Jorge Lima Barreto, do género minimal repetitivo, onde as campainhas pontuam a profusa e colorida sonoridade metálica que delas emana. Álbum que inclui quatro faixas designadas de Equinox e Solstice (I e II), dois temas inspirados no ciclo das estações do ano e na influência astronómica da posição do sol em relação ao mar.

            Durante o evento, o António Barros apresentou-me, pessoalmente, ao Silvestre Pestana, e combinámos jantar junto ao rio. Era noite dentro e surgiu, de permeio, o desafio para escrever sobre  Águas Vivas. E isto sem possuir qualquer formação específica em história de arte e, muito menos, experiência de escrever e publicar sobre os territórios da arte contemporânea. Era urgente documentar-me e estudar a obra do Silvestre Pestana para depois poder aventurar-me num exercício de escrita. Uma coisa é certa, pedi de imediato o registo sonoro digital de Neo Neon e gravei-o no iPod, incorporado no iPhone, e passei a ouvir com regularidade a música do Jorge. Sobretudo, quando, nos dias seguintes, regressei ao centro interpretativo para analisar a instalação e elaborar algumas notas de leitura. Apercebi-me, naquela altura, que a música constitui um elemento essencial para fazer a hermenêutica desta instalação em néon, pois foi especificamente pensada e escrita para ela.

            Encomendei, posteriormente, numa loja especializada toda a música disponível do Jorge Lima Barreto na esperança de adquirir o álbum Neo Néon, que inclui, na sua contracapa, a reprodução da fotografia, de Antóno Alves, do grupo escultórico Águas Vivas. Porém, este álbum, que foi editado em 2003 mas que havia sido produzido pelo Vítor Rua três anos antes, já se encontrava fora do circuito comercial. Adquiri Ctu Telectu, que é um conhecido álbum de 1982 e num tempo em que o Jorge integrava a formação Telectu com o Vítor Rua. Este CD foi depois reeditado em 1992 e 2008. Data também deste ano de 2008 o álbum a solo de piano Zulzelub (título que descodificado é Zul = Luz e zelub = Boulez).

             Porém, o ano passado, e com a preocupação em escrever sobre a obra do Silvestre Pestana, registei um interesse em mostrar algumas das obras icónicas de autores ligados ao movimento da Poesia Experimental, ou PO.EX, na feliz fórmula acromática de E. M. de Melo e Castro. Foi o caso da exposição internacional Povo – People, que esteve patente no Museu da Electricidade, em Lisboa, durante os meses de Junho a Setembro, e que se inseriu no quadro mais amplo das comemorações do Centenário da República.

            É importante constatar que à pergunta “O que é o povo?” – que funcionou como o fio condutor de toda a exposição – o comissário João Pinharanda tenha destacado a proposta Povo Novo de Silvestre Pestana. Um trabalho produzido em 1975, com o recurso à fotografia e a materiais gráficos. Nele faz uso de um intencional hibridismo resultante do jogo e permutação entre signos linguísticos (a letra n, p e ovo) e não linguísticos (o objecto ovo e o próprio corpo).

            Além de Povo Novo de Silvestre Pestana, também Escravos (1979), do António Barros, consta do catálogo Povo People: Exposição - Exhibition  desta exposição retrospectiva alusiva à temática e para o período de 1910 a 2010. Este poema visual mostra-nos a palavra “escravos” repetida verticalmente, em coluna, uma coluna de “escravos”. E constatamos, porque estamos de facto a ver a língua, o apagamento subtil e localizado da primeira sílaba da palavra. Ora, a palavra descoberta através desse processo, posta a nu, revelada, “cravos”, pensada em relação com a dominante, “escravos”, mostra ao leitor / observador a evidência do poema: “cravos”, símbolo da ordem democrática instaurada após o 25 de Abril de 1974, enquanto a palavra “escravos” é conceptualmente associada à anterior ordem ditatorial. Sintomático é o ressurgimento, também subtil, dessa primeira sílaba, apagada para revelar o signo da liberdade: os “escravos” voltam a mostrar-se sobre os “cravos”, substituindo-os. Este trabalho  foi pintado em tinta plástica preta sob tecido em fundo branco, o que exigiu um enorme rigor na execução técnica, mas onde, em contrapartida, é notório o despojamento nos meios técnicos utilizados na sua produção. Despojamento de meios na produção artística que constitui outro dos traços caracterizadores da arte conceptual. Em Escravos deparamo-nos com um exercício premunitório de leitura histórica e crítica, sobre o(s) sentido(s) da história mais recente de Portugal. Trabalho que viria mais tarde a ser premiado no âmbito do Concurso Nacional de Poesia 10 Anos do 25 de Abril, promovido, em 1984, pela Associação 25 de Abril, cujo júri era composto por Sophia de Mello Breyner Andresen, Manuel Alegre, David Mourão Ferreira, José Carlos de Vasconcelos e Urbano Tavares Rodrigues. O valor, estético e icónico, deste poema visual permanece incólume, embora seja pouco conhecido do grande público.

            No Outono do ano passado, e nas páginas da revista Bombart, saiu a público o meu texto Poética do contemporâneo em Águas Vivas de Silvestre Pestana, intercalando o texto Valsamar do António Barros, e, nem mais nem menos, Piano, Piano, Pianíssimo do Jorge Lima Barreto. Este pode ter sido um dos últimos textos que ele publicou. Lido hoje, constata-se nele existir um grito amargurado e de acidez crítica do autor, em relação ao esquecimento a que a sua obra era devotada, veja-se como ele termina: “Oculta-se a criatividade daqueles que são os músicos, trabalhadores artistas que, infelizmente, e por lapsos e deliberações autocráticas têm tão poucos apreciadores – a música é dos músicos e as instituições para a Música não se podem arrogar com posturas censórias e silenciar a produção artística apenas por motivos demagógicos, a deitar o olho à propaganda na TV e nos média em geral, amnistiadas por lamurientas restrições orçamentais... a voracidade é sôfrega, o poder é que interessa. Os músicos (todos eles e de todos os quadrantes) precisam comunicar o seu trabalho e não se pode deixar passar decisões impróprias e arbitrárias que os atirem para o desemprego e a incomunicabilidade ou ao serviço compulsivo de sobrevivência. … Música é Cultura.” (in Bombart, Porto, Set. Out., de 2010, n.º 10, p. 11).

            Quantos de nós prestaram uma atenção genuína à mensagem subjacente às palavras deste texto? Independentemente da resposta a esta pergunta, e para combater este silêncio ensurdecedor que não se abateu só sobre os cultores da música electroacústica mas é extensível a toda uma geração de autores que contribuíram, como poucos, para a internacionalização da arte contemporânea portuguesa, havíamos formulado uma proposta para comissariar a organização do ciclo Nas Escritas PO.EX para ter lugar na Casa da Escrita, em Coimbra, onde está previsto serem convidados a apresentarem o seu trabalho mais recente os seguintes autores: Ana Hatherly, E. M. de Melo e Castro, Alberto Pimenta, Silvestre Pestana, Jorge Lima Barreto, António Barros, Fernando Aguiar e Manuel Portela.

            Não vamos poder contar com a presença singular do Jorge Lima Barreto para ele nos falar do seu experimentalismo musical e da musicologia. No entanto, e após o seu obituário, antecipei a leitura do seu livro Música Minimal Repetitiva. Um volume publicado em 1991 e servido de uma escrita muito incisiva. Por ela constatei que o autor obedeceu a um programática própria entre aquela que era a sua produção musical e musicológica.

            A verdade é que a história da música em Portugal, no mínimo, vai registar que devemos ao Jorge Lima Barreto a invenção do termo música minimal repetitiva (mmr). E impressiona-me a consciência lúcida e os conhecimentos que ele tinha deste facto ao publicar, no início da década de 90, estas palavras:           

            «É facílimo de compreender que eu inventei mmr, não se trata de nenhum excelentíssimo dinossauro ou do problema do sexo dos anjos. Concatenei o termo inglês “minimal” com o francês “repetitif”.

            A mmr tem uma existência já discutida e debatida por grandes musicólogos (Schnebel, Stoianova, Caux) ou produzida por grandes músicos (Reich, Riley, Fripp, Ashley) e é inerente a obras dos maiores compositores contemporâneos (Cage, Parmegiani, Henry, Ferrari) e o minimal foi subentendido em Satie ou Duchamp, Julien Beck ou Ionesco bem como a repetitividade vem de Couperin, das orquestras indonésias de gamelão, dos batuques africanos e até da música bio-feedback dos compositores da acusmática.

            Também chamada música periódica ou simplicidade musical, preconizo que o ápodo de m.m.r. é , em si mesmo, completivo.

             A mmr não é uma escola, como o dodecafonismo ou o impressionismo, nem um estilo epocal como o barroco ou a música bizantina, é então um pragmatismo musical contemporâneo que usa o repetitivismo de unidades mínimas como patterns dum jogo estético.

            Já tem imensos apreciadores: desde os admiradores do rock alemão, aos idolatras das ambiências do Eno, passando pelo Jazz-off de repetições progressivas de Ph. Glass ou o minimalismo tecnopop de Mertens até aos intelectuais que pensam a música de Steve Reich e a culminar nas élites subentendidas que ouviram “she was a visitor” de Ashley ou o 4'33'' de Cage...

            Na verdade, e que se saiba, este é o primeiro livro sobre mmr que se publicou em língua portuguesa (na espanhola ou italiana também não há bibliografia específica).»[1]

 

            Mais à frente, e ao elencar a tiplogia da mmr, pude perceber que, de acordo com as suas categorias, a música de Neo Neon é repetitiva ambiental. Ele observa que o marulhar repetitivo das águas é esquecido, contudo sabemos que estamos na costa, só aí existe esse som. E acrescenta que a “música repetitiva ambiental (ou eco-repetitiva), escolhe os objectos sonoros (minimalismo da frase, do som, da melodia, do acorde, do ruído, do espectro electro-acústico) e introspecciona-se para formular através da repetição um grupo de organismos constituídos por esses objectos sonoros. É a distração, o esquecimento, como um sonho de força abstracta: é o júbilo da repetição,” (in Música Minimal Repetitiva, p. 98). Com efeito, a música de Neo Neon do Jorge Lima Barreto sugere em nós uma enorme sensação sonora de visualização do ambiente aquático. Acho que eu, o Silvestre Pestana e todos aqueles que conhecemos a sua instalação Águas Vivas – que foi Grande Prémio da XII Bienal Internacional de Arte de Vila Nova de Cerveira em 2003 -, estamos-lhe gratos, pois ouvir esta música repetitiva ambiental permite-nos visualizar a instalação Águas Vivas.

            Por último, registemos a coerência intelectual e de trajectória de vida do Jorge Lima Barreto ao escrever, e termino a citar, uma vez mais, as suas palavras: “O facto de tocar e escrever sobre música minimal repetitiva coloca-me na vanguarda musical portuguesa (esta obra reafirma-o)... Não poderia escrever sem amar aquilo que escrevo nem ignorar a minha experiência pessoal – é esta a 'moral científica da musicologia.'”

   
 

[1]    BARRETO, Jorge Lima -  Música Minimal Repetitiva. Lisboa: Litoral, 1991, p. 31.

   
   
   
   
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