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Foi com a frieza do manifesto
do Unabomber que nos chegou a notícia da morte de Jorge Lima
Barreto. A jazz.pt sempre acompanhou com particular dedicação o seu
singular trabalho. Agora, resta-nos revisitar o seu percurso e
salientar os motivos pelos quais a sua obra deve ser revalorizada.
Jorge Lima Barreto abandonou a
vida a 9 de Julho. De canivetada em canivetada na arriscada aposta
de vida que fez, sentiu que a tinha perdido e deixou-se ir.
Nasceu em Vinhais,
Trás-os-Montes, estudou Direito e depois História; morou no Porto,
que depressa se tornou demasiado acanhado, e veio para Lisboa. Viveu
intensamente num modelo à margem de todas as convenções. Nunca teve
um empregoe evitou sempre uma existência “normal” e tributável; era
avesso a bilhetes de identidade, impostos, seguranças sociais,
hospitais e convenções. Fez quase tudo o que lhe apeteceu e como lhe
apeteceu.
Ignorou olimpicamente o País, a
que sempre se sentiu acima. A ele devemos – e devo eu pessoalmente –
um papel de reflexão único sobre jazz, rock e música improvisada,
com alguns livros absolutamente excepcionais e estruturantes.
Portugal também o ignorou, e no
entanto a sua morte foi profusamente ventilada nos jornais. Até A
Bola a noticiou. Mas nesta nação tão próspera em criatividade e
inovação, a sua vida não mereceu mais do que raras entrevistas,
notícias ou críticas. A jazz.pt isenta-se desta responsabilidade,
pois comentou as publicações musicais dos Telectu e dosZulZelub e
dedicou ao primeiro duo uma extensa reportagem logo no número 5
(Março/Abril de 2006) e a si mesmo no número 18 (Maio/Junho de
2008).
Num país com pouquíssimas
mentes capazes de gerar reflexão e teorização sobre o jazz,
particularmente até aos anos 1990, Jorge Lima Barreto destacou-se
por produzir um pensamento profundo, a partir de uma audição ampla,
culta e apaixonada, e de o organizar em livros fundamentais: “A
Revolução do Jazz” (1972), “Jazz-Off” (1973), “Rock & Droga” (1982),
“Droga de Rock!” (1984), “Nova Música Viva” (1996).
Tinha duas faces e uma era
consequência da outra. Era um cérebro curioso e um espírito loquaz;
as suas genialidade, intuição, inflexibilidade e humor tinham, no
seu reverso, uma inabilidade social extrema, alguma mitomania,
selectividade e… uma vertiginosa tendência para a “gaffe”.
Era um musicólogo heurístico e
profundamente anti-académico, apesar de ter conseguido, num processo
lento e arrastado (1995-2009), formatar-se e completar o seu
doutoramento. Era profundamente intuitivo, não só enquanto ouvinte,
mas também como músico. Metodologicamente livre, seguiu sempre o seu
instinto, o seu conhecimento enciclopédico e a sua mente apaixonada
pela música, disponível para ouvir sem a necessidade tecnocrática de
classificar.
Por isso, Jorge Lima Barreto
era respeitado, especialmente por uma geração de músicos que
despontou nos anos 1980 e à qual o Jorge abriu portas, apontou
caminhos e informou.
Escreveu sobre o jazz de Keith
Jarrett quando os outros diziam que não era jazz. Sobre o jazz de
Anthony Braxton quando outros diziam que não era jazz. Sobre
DerekBailey, AlbertAyler, Cecil Taylor, SunRa, ArtEnsembleOf Chicago
e sobre tantos outros que, anos mais tarde, viriam a ser jazz para
todos os demais. Era capaz de pressentir a genialidade e a revolução
antes de toda a gente. Tinha uma escrita simultaneamente sintética e
barroca: cheia de neologismos aglomeradores e muito marcada pelo
vocabulário das ciências sociais da década de 1960. «Não se pode
falar de coisas complexas de maneira simples», acreditava.
O Jorge era inspirador,
conhecedor, desconcertante, extremamente inteligente, com um enorme
instinto para descobrir a originalidade. Misturou a sua vida com a
música de forma completa e absorvente. Os seus três grupos
principais, AnarBand com Rui Reininho, Telectu com Vítor Rua e
ZulZelub com Jonas Runa, foram muito mais do que grupos: foram
experiências de vida, de consumo em conjunto. Viveram a música, os
concertos, os livros, as influências, os amigos, as conversas, as
audições, as festas.
Não gostava de sair de casa,
mas transformou-a, durante algum tempo, num albergue espanhol, onde
se ia para ouvir música, conversar, beber, fumar, jogar. Um mundo
muito particular na Rua da Imprensa Nacional, onde as maiores
loucuras pareciam normais. E eram.
Criou um grupo restrito de
amigos que lhe traziam as novidades do exterior. Mesmo assim,
aparentemente enclausurado, parecia que sabia sempre mais, que
recebia as novidades antes de todos os outros. António Palolo,
António Duarte, Mané, Bernardo Devlin, Carlos Andrade, Rui Neves,
Joana Vasconcelos, David Maranha, Manuel Laranjinha, Manoel Barbosa
foram alguns dos que tiveram o privilégio de privar mais
intensamente com ele, nestas sessões de divertimento puro que davam
lugar a filmes alucinados: “O Arrumater”, “Raggazzidi Denver”, “O
Homem Madeira”, “O Organista Gay” foram alguns dos sucessos que
mostram o melhor do Jorge, alegre, imediatista, com um humor agudo,
despreocupado e muito divertido.
A sua visão do mundo
estabelecia-se entre bons e maus, como num livro de banda desenhada.
Não resistia a uma alfinetada. Os maus eram muitos e os bons só o
eram enquanto não interferissem demasiado consigo e com a sua
música. A partir do momento em que quisessem ter alguma produção
musical tornavam-se tão miseráveis quanto a vida de um emigrante
ilegal e o Jorge assumia a pose de um advogado, na altura em que
deduz a acusação. Eram quase sempre obrigatoriamente medíocres,
chupistas ou qualquer outra taxonomia abaixo destas. Os seus discos
iam para uma secção das suas estantes a que chamava “purgatório” e,
em casos excepcionais, para o “inferno”, de onde nunca mais poderiam
sair.
Esta sua faceta destrutiva
roubava-lhe energias e um tempo que, infelizmente, não era
canalizado para aquilo em que era realmente excepcional: a escrever,
a tocar e a ouvir. O Jorge tinha um património discográfico
gigantesco, entre vinil e CDs, e um conhecimento musical
enciclopédico. Do jazz (todo o jazz), da improvisação, do rock (todo
o rock), da música popular, da música contemporânea, electrónica,
clássica e antiga.
A sua música é quase sempre
excelente. Uma abordagem gestualista – performativa – aos teclados
fez dele um músico imediatamente reconhecível. Abordava o
instrumento como Pollock a tela, tomava-se e era tomado por um
estado de imersão musical e abria espaço para que o seu instinto
improvisador se libertasse. Foi pioneiro no uso criativo dos
sintetizadores entre nós, bem como na construção de formas de
notação para a electrónica.
Também foi precursor (com
Carlos “Zíngaro”) na integração portuguesa no movimento da
improvisação europeia. Teve ainda um papel dianteiro na introdução
da música minimal, tendo juntado a nomenclatura francesa – música
repetitiva – à inglesa – música minimal –, cunhando a “música
minimal repetitiva”.
O grupo Telectu, que formou em
1982 com Vítor Rua, marcou decisivamente a música portuguesa que,
com exclusão de algumas tentativas vindas dopop/rock, era um mundo
em “playback”. Os Telectu abordaram a música minimal repetitiva
(abandonada em 1985), a música improvisada, os mimetismos
jazzísticos, os ambientais e outras derivações criativas. Com uma
carreira internacional com algum significado (mas que passou
despercebida), criaram algumas associações musicais intensas, como
por exemplo com Daniel Kientzy.
Com o tempo, e particularmente
a partir de 1995, Jorge Lima Barreto foi prescindindo dos
sintetizadores e focando-se no piano (com uma digressão breve pela
bateria digital). A partir de 1998 passou a dedicar-se
exclusivamente a este instrumento, nos seus últimos espectáculos
assumindo mesmo um papel teatral, numa parceria com Joana
Vasconcelos. Esta vontade de ampliar a componente performativa
através da colaboração com artistas plásticos sempre foi uma
preocupação dos Telectu, sendo a ligação com António Palolo, a
partir do final dos anos 1980, a mais duradoura e profícua.
O esforço do doutoramento foi a
plastificação brilhante de muitos aspectos negativos: os seus
últimos anos foram discretos, remetendo-se ao silêncio e cultivando
um processo progressivo de isolamento. O mundo e a economia
começaram a mudar a partir da década de 1980. Vítor Rua foi-se
modificando, mas o Jorge recusou-se a alterar fosse o que fosse,
preferindo acusar o mundo de não medalhar a sua superioridade (real
ou imaginária, o tempo o dirá) em relação ao meio criativo
português. Os Telectu acabaram por se separar em 2007 e o novo
projecto ZulZelub nunca atingiu o interesse musical dos Telectu
antes proporcionado.
Para o futuro ficarão os seus
livros, os seus textos e os seus discos. Fica o reconhecimento quase
unânime por parte da comunidade experimental portuguesa do seu papel
pioneiro (a par de“Zíngaro”) e o reconhecimento quase unânime, por
parte dos apreciadores de jazz, rock e música improvisada, do seu
papel divulgador e formador. De divulgador porque, se é verdade que
José Duarte é um promotor amável do jazz em Portugal, é igualmente
verdade que Jorge Lima Barreto foi o único capaz de o
intelectualizar, de dar profundidade e razões (e também de o
radiofonizar, porque teve um programa de rádio,Musonautas, na Rádio
Comercial, durante nove anos) que divulgaram a música com uma
profundidade que mais ninguém conseguiu.
Terá, porventura, uma
importância superior na formação de um enorme grupo de ouvintes e
críticos, nos quais me incluo. O tempo o dirá.
E fica a sua música. Como a sua
discografia é extensa (e grande parte dela, com os Telectu, já foi
analisada no número 5 da Jazz.pt), remetemo-nos para um breve
conjunto de sugestões, portas de entrada para o universo
multifacetado da sua música em CD:
Anarband: “Encounters”, Movieplay (reedição CD 1996); Telectu: “CtuTelectu”,
iPlay (reedição CD 2008); Telectu: “Belzebu/OffOff”, AnAnAnA
(reedição CD 1993); Carlos
“Zíngaro” / Jorge Lima Barreto: “Kits”, Numérica (1992); Telectu /
Chris Cutler / JacBerrocal: “Telectu/Cutler/Berrocal”, Fábrica de
Sons (1995);Telectu / JacBerrocal: “À Lagardère”, Numérica (1996);
Telectu: “TelectuSolos”, Baucau Records (1999);Telectu: “NeoNeon”,
Plancton (2003); Telectu / SunnyMurray / Gerry Hemingway /
EddiePrévost: “Quartetos”, Trem Azul (2002).
Oiçamo-la. |