O Sonho Alquímico de Enodato
e o Perfil do Filósofo Natural
A.M.AMORIM DA COSTA

1. Introdução

2. No deserto, mergulhado num mundo de miragens

3. A Imperatriz da quinta-essência de todas as quintas

4. Na Ilha dos sonhos

5. Notas

Jardins de Enodato (Imagens)

2. No deserto, mergulhado
num mundo de miragens

A virtude, a fé e o trabalho paciente até à revelação, são os requisitos primeiros do caminho que leva à Ars Magna. “Ora, lege, relege, labora et invenies”. Por isso mesmo, no seu início está, em geral, o deserto, o refúgio dos ermitas que à oração, à leitura e ao trabalho da sua própria transformação querem dar o melhor de si mesmos. Não surpreende pois que ele seja o primeiro elemento do sonho de Enodato.

Depois de ter ponderado todos os enigmas com que os Adeptos explicaram a Ars Magna, Enodato adormeceu e sonhou que estava embarcado num navio que fustigado por violenta e furiosa tormenta se desfez, tendo ele sido arrojado, abraçado a uma tábua, para uma praia deserta a que se seguiam, terra adentro, uns dilatados e desconhecidos campos, totalmente desérticos e despovoados, sem quaisquer culturas, nem estradas, nem veredas.

Em pleno deserto, viu-se mergulhado num mundo de miragens. Era como se estivesse na cidade de Morgana, essa cidade do Reino de Nápoles, onde, “no meio dos vapores do ar, aparecem com tão admirável como repentina architectura, Castellos e Palácios com arcos magníficos e colunas equidistantes, e estas em tão grande numero, (…), mais de dez mil, todas belíssimas, com proporção e cor admirável, e pouco a pouco desvanecendo os primeiros objectos, succedem, como em differentes scenas e aparências, bosques ameníssimos, ciprestes e arvores mayores em fileiras, e campos abertos, cheyos de homens, e gados de muitas castas” [13].

Mercê da sobreposição de diferentes camadas de ar com diferente grau de rarefacção e, consequentemente, diferente índice de refracção, os raios luminosos provenientes de um mesmo ponto de qualquer objecto dão origem a uma distribuição de pontos-imagem numa longa linha vertical. Formam-se assim uma infinidade de imagens virtuais de um mesmo objecto. Nas costas do estreito de Messina, as condições atmosféricas são propícias à ocurrência deste fenómeno. Homero na Odisseia, Virgílio na Eneida, Ovídio nas Metamorfoses e Dante na Divina Comédia o haviam constatado. Hoje a Física explica-o com naturalidade com as suas explicações dos fenómenos ópticos, como explica a infinidade de imagens virtuais de um objecto posto entre dois espelhos paralelos. Mas antes de se ter encontrado esta explicação, outras foram as explicações. Num mundo de duendes e fadas, ele tornou-se um fenómeno lendário. Por ali andara a Fada Morgana, essa figura lendária dos celtas, irmã do rei Artur que com ele casou e de quem teve filhos, e que o protegeu quando caiu morto. Ligada pois ao grande arauto da busca do Santo Graal. Não surpreende pois, que o fenómeno fosse particularmente objecto de especulações para os Adeptos da Alquimia, tido como um fenómeno de luz e sombra da Arte Magna.

O padre Atanásio Kircher a quem Anselmo Munho´s de Abreu tem sempre presente ao longo de toda a Enn œa, pois é seu objectivo refutar todos os argumentos por ele aduzidos contra a existência do “grande mysterio da Arte Magna”, servindo-se deles para provar a mesma, designa o fenómeno em causa de “maravilhoso apparato” E no seu propósito de impugnar os mistérios da Arte Magna, com toda a clareza afirma que ele se explica por “razões naturaes, fundadas na Catóptrica, pela proporcionada mistura de luzes e sombras, formando-se no meyo dos vapores mais crassos, oppostos ao monte, huma opacidade, com vários ângulos de incidência e reflexão, da qual resulta um perfeito espelho polyedro, que de um só objecto, v. g. de huma so columna, que acaso estará na praya, se reflecte huma prodigiosa multidão de columnas”. Assim, “de huma árvore se faz um bosque, de hum homem se faz um exército” [14].Falando do seu sonho, Enodato sabe desta explicação, mas sente-se melhor com o maravilhoso. Está no deserto, sente-se bem com uma explosão de energia que caracteriza este seu primeiro estado da sua caminhada rumo ao reino onde mora o grande Artífice da Arte Magna. Situado ainda do lado de cá do espelho, sente-se confortado com a multiplicação maravilhosa de si mesmo num vislumbre que lhe dá a força necessária para caminhar no meio de tanta aridez.

O deserto onde as coisas são miragem de luz e sombra é o lugar próprio para o Adepto iniciar a sua iniciação. No princípio era o Caos e as Trevas. No seu gérmen, a Obra é nigro, a confusão dos elementos, na dissolução de tudo na confusão primordial dos elementos, a corrupção ou putrefacção da semente que no seio das Trevas, no húmido e cálido útero materno, se dispõe para a geração. É no deserto, no Caos tenebroso tornado tenebroso abismo, que a dissolução das matérias seminais da Obra se dá para que se torne possível a resolução dos elementos em Mãe-Água.

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A.M.AMORIM DA COSTA. Dept. Química, Faculdade de Ciências e Tecnologia . Universidade de Coimbra . 3004 – 535 Coimbra – Portugal

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Última Actualização:
06-Apr-2006