JOSÉ GAMA:
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INDEX1. Introdução |
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2. Os dados da questão |
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Entre as referências à Cabana do Santo encontramos numa carta, escrita em S. Vicente, em Junho de 1551, por Maximiano, um acompanhante do missionário P. Leonardo Nunes, em incursão de pregação pelas aldeias dos índios, uma indicação significativa pela simplicidade e clareza com que é apresentada: “Estando lá vimos uma cabana, que estava no meio da aldeia, a qual nos disseram que era do seu santo, que são uns homens que enganam a estes miseráveis. E começando a perguntar-lhes, achámos que os trazia perdidos, enganados com grandíssimas falsidades.” (LEITE, 1956, p. 248). Esta breve notícia acrescenta imediatamente a posição dos missionários perante o facto, como testemunho claro da atitude mais comum entre eles. É necessário recorrer a outras cartas para termos informações mais detalhadas sobre o significado da cabana e das actividades desempenhadas pelos “santos”, “feiticeiros” ou “pagés”. E essas informações vêm de duas fontes, nesse período dos primeiros anos aqui considerados. Claro que estas informações obedecem ao pressuposto ou preconceito de superioridade da cultura e da religião dos europeus missionários, e são por isso acompanhadas dos termos judicativos que transmitem geralmente uma avaliação condenatória. Importa atender à informação das práticas relatadas, procurando desvinculá-las da apreciação que as acompanha e condena à partida. Da mesma data, e da mesma região de S. Vicente, o Ir. Pero Correia oferece-nos um quadro mais completo dessas práticas: “(…) e de tempos a tempos se levantam entre eles alguns que se fazem santos e persuadem os outros que entram neles espíritos que os fazem sabedores do que está para vir e profetizam muitas mentiras. Também pensam que estes lhes podem dar saúde, de maneira que só porque lhes ponham as mãos lhes dão quanto lhes pedem. Também pensam que lhes podem dar vitória. Estes fazem umas cabaças à maneira de cabeças com cabelos, olhos, narizes e boca, com muitas penas de cores que lhes colam com cera, compostas à maneira de adornos, e dizem que aquele é santo e que tem virtude e poder para valer-lhes em tudo, e dizem que fala. E em honra destes seus ídolos inventam muitos cantares que cantam diante deles, bebendo muitos vinhos tanto homens como mulheres, todos juntos, de dia e de noite, fazendo harmonias diabólicas.” (LEITE, 1956, p. 225) Anterior, no tempo, e da região da Baía, de Agosto de 1549, é a famosa descrição do P. Manuel da Nóbrega, que começa por identificar o termo “Tupã” ou “Tupana” como o mais adequado ou mais aproximado para significar Deus, descrevendo em seguida as cerimónias: “De tantos em tantos anos vêm uns feiticeiros de longes terras, fingindo trazer santidade; e ao tempo de sua vinda lhes mandam limpar os caminhos, e vão recebê-los com danças e festas segundo o seu costume, e antes que cheguem ao lugar andam as mulheres de duas em duas pelas casas, dizendo publicamente as faltas que fizeram a seus maridos, e umas às outras, e pedindo perdão delas. Chegando o feiticeiro com muita festa ao lugar, entra numa casa escura, e põe uma cabaça que traz em figura humana, em parte mais conveniente para os seus enganos, e mudando a sua própria voz como de menino, e junto da cabaça lhes diz que não cuidem de trabalhar, nem vão à roça, que o mantimento crescerá por si, e que nunca lhes faltará que comer, e que virá por si a casa; e que os paus aguçados irão cavar, e que as flechas irão ao mato por caça para o seu senhor, e que hão-de matar muitos dos seus inimigos, e cativarão muitos para os seus manjares. E promete-lhes longa vida, e que as velhas se hão-de tornar moças, e que as filhas as dêem a quem quiserem, e outras coisas semelhantes lhes diz e lhes promete, com que os engana; de maneira que crêem haver dentro da cabaça alguma coisa santa e divina, que lhes diz aquelas coisas, as quais crêem. E acabando de falar o feiticeiro, começam a tremer principalmente as mulheres com grandes tremores em seu corpo, que parecem endemoninhadas, como de certo o estão, lançando-se por terra, espumando pelas bocas, e nisto os persuade o feiticeiro que então lhes entra a santidade, e a quem não o faz, levam a mal. E depois oferecem-lhe muitas coisas. E nas enfermidades dos gentios usam também estes feiticeiros de muitos enganos e feitiçarias.” (LEITE, 1956, p. 150-152) É esta a descrição das práticas principais. O que é que fica de mais importante e decisivo nestas cerimónias ligadas à cabana ou casa escura, para se poder avaliar a expressão de religiosidade dos índios Carijós, e que tão negativamente impressionou a sensibilidade dos missionários católicos? Para o P. Manuel da Nóbrega foram logo de início identificados os feiticeiros, a partir destas acções, como os “maiores contrários que aqui temos”, mesmo não reconhecendo nessas práticas a expressão duma religiosidade profunda. É difícil retirar a essas práticas a presença duma força superior ou crença mobilizadora, que mantém toda a população em atitude receptiva nas visitas periódicas do pagé. Este é o representante dum poder superior, reconhecido nas variadas funções que lhe são atribuídas: curar, aconselhar, profetizar. Poder que se perpetua nos tempos, através das mesmas práticas que não dependem directamente da pessoa do feiticeiro. A expectativa da população está associada a uma série de atitudes que assumem características de autênticos rituais de preparação, como limpar os caminhos, com danças e festas, e com confissão pública e pedido de perdão pelas faltas cometidas. De igual modo, as cenas de histeria ou transe colectivo das pessoas depois da fala do feiticeiro. Pero Correia, em S. Vicente, associa também a estas cerimónias as muitas bebidas, de homens e mulheres, os cantos e as danças. Todos estes elementos expressam uma compreensão e vivência muito peculiares do sagrado, que se intensifica como particular manifestação teofânica com a visita ritual da “santidade” ou pagé. O uso da bebida e dos fumos são os meios rituais utilizados que ajudam a criar o estado de espírito mais adequado à comunicação com o divino, que é habitualmente identificado com o trovão. Nestas cerimónias ele torna-se mais próximo e mais receptivo através do feiticeiro e do encenamento do oráculo, com o recurso a “uma cabaça que traz em figura humana”, e que se faz ouvir com voz de menino. E se ao feiticeiro são reconhecidos poderes de cura e de aconselhamento, o poder da profecia parece ser atribuído ao ser que fala com voz de menino, através da “cabaça em figura humana”. A profecia-promessa de um mundo totalmente diferente, onde tudo se alcançará sem trabalho nem sofrimento, em autêntico paraíso de juventude e felicidade, constitui o ponto alto do ritual, que Nóbrega associa à crença em algo “santo e divino”, que assim se manifesta e dá a conhecer como promessa, provocando a reacção imediata do transe colectivo. Esta crença em algo superior, que se manifesta em determinadas circunstâncias rituais e com a intensidade descrita, tem a regularidade de uma prática que a situa no centro da mundividência e do comportamento destas populações de índios. É o eco desta crença, como projecto utópico que só se realizará na promessa dum mundo mítico futuro (por exemplo, na “Terra sem Males” do povo guarani), que podemos reconhecer na reacção dos índios à pregação dos missionários, os novos pagés que vinham do outro lado do oceano. Esta reacção aparece explicitamente na carta do P. António Pires, de Pernambuco, em Junho de 1552: “Quando vim para casa já me estava esperando um Principal doutra Aldeia, que vinha carregado, com sete ou oito negros, de milho. O seu intento é que lhe demos muita vida e saúde e mantimento sem trabalho como os seus feiticeiros lhe prometem.” (LEITE, 1956, p. 325) Também neste espírito se enquadra a admiração e receptividade geral em relação a pregações e cerimónias religiosas. Admiravam-nas e interpretavam-nas à luz da sua própria religiosidade, acrescidas pela novidade e eloquência com que eram apresentadas. A eloquência sempre provocou grande admiração nos índios, mais até do que a valentia. (LEITE, 1938, cf. p. 30) Outro exemplo dessa atitude receptiva, agora já com clara ressonância dos efeitos produzidos pelos novos pregadores, podemos ver na carta do P. António Blasquez, da Baía, numa fase um pouco posterior, em Setembro de 1561. Para além doutras reacções, relata o testemunho dos índios, perante a pregação eloquente do P. Gaspar Lourenço, “dizendo muito contentes e satisfeitos: Agora estaremos seguros e nossos filhos serão outros; começaremos a aprender e viveremos melhor do que até agora vivíamos.” (CARTAS, 1931, p. 300) |
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José Gama . UCP – Faculdade de Filosofia de Braga |
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