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Não se evangelizam pessoas, filhos e filhas de nosso tempo,
apresentando um modelo medieval de Igreja, feito bastião de
conservadorismo, de autoritarismo e de antifeminismo e sentindo-se
uma fortaleza assediada pela modernidade, tida como a responsável
por todo tipo de relativismo. Diga-se de passagem que a crítica
feroz que o atual Papa move contra o relativismo é feita a
partir de seu pólo oposto, o de um invencível absolutismo. Pois esta
sendo a tônica imposta pelos últimos dois Papas, João Paulo II e
Bento XVI: um não às reformas e uma volta à tradição e à
grande disciplina, orquestradas pela hierarquia eclesiástica.
O livro de Küng A Igreja tem salvação? expressa um grito
quase desesperado por transformações e, ao mesmo tempo, uma
manifestação generosa de esperança de que estas são possíveis e
necessárias, caso ela não queira entrar num lamentável colapso
institucional. Fique claro, de saída, que quando Küng e eu mesmo,
falamos de Igreja, entendemos, em primeiro lugar, a comunidade
daqueles que se permitem um envolvimento com a figura e a causa de
Jesus. O foco, então, reside no amor incondicional, na centralidade
dos pobres e invisíveis, na irmandade de todos os seres humanos e na
revelação de que somos filhos e filhas de Deus, Jesus mesmo deixando
entrever que era o próprio Filho de Deus que assumiu a nossa
contraditória humanidade. Este é o sentido originário e teológico de
Igreja. Mas, historicamente, a palavra Igreja foi apropriada pela
hierarquia (do Papa aos padres). Ela se identifica com a
Igreja tout court e se apresenta como a Igreja.
Ora, o que está em profunda crise é esta segunda compreensão de
Igreja que Küng chama de “sistema romano” ou a
Igreja-instituição hierárquica ou a estrutura monárquico-absolutista
de comando. Sua sede se encontra no Vaticano e se concentra na
figura do Papa com o aparato que o cerca: a Cúria Romana. Há séculos
que esta crise se prolonga e o clamor por mudanças atravessa a
história da Igreja, culminando com a Reforma no século XVI e com o
Concílio Vaticano II (1962-1965) de nossos dias. Em termos
estruturais, há que se reconhecer, as reformas sempre foram
superficiais ou proteladas ou simplesmente abortadas. Nos
últimos tempos, entretanto, a crise ganhou uma gravidade toda
especial. A Igreja-instituição (Papa, cardeais, bispos e padres),
repito, não a grande comunidade dos fiéis, foi atingida em seu
coração, naquilo que era a sua grande pretensão: a de ser a “guia e
mestra da moral” para toda a humanidade. Alguns dados já conhecidos
puseram em xeque tal pretensão e colocaram a Igreja-instituição em
descrédito. Os escândalos financeiros envolvendo o Banco do
Vaticano (IOR) que se transformou numa espécie de off-shore de
lavagem de dinheiro; documentos secretos, subtraídos das mais
altas autoridades eclesiásticas, quem sabe até da mesa do Papa por
seu próprio secretário e vendidos aos jornais, dando conta das
intrigas por poder entre cardeais; e especialmente a questão
dos padres pedófilos: milhares de casos em vários países, envolvendo
padres, bispos e até o Cardeal pedófilo de Viena Hans Hermann
Groër. Gravíssima foi a instrução de 18 de maio de 2001 enviada pelo
então Cardeal Ratzinger a todos os bispos do mundo, para
acobertarem, sob sigilo pontifício, os abusos sexuais a menores
pelos padres pedófilos, a fim de que não fossem denunciados às
autoridades civis. Um Magistrado de Oregon, USA, tentou convocar o
Cardeal a um tribunal. Finalmente o Papa teve que reconhecer o
caráter criminoso da pedofilia e aceitar seu julgamento pelos
tribunais civis. Küng mostra, com erudição histórica
irrefutável, os vários passos dos papas para passarem de sucessores
do pescador Pedro, a vigários de Cristo e a representantes de Deus.
Os títulos que o cânon 331 confere ao Papa são de tal abrangência
que cabem, na verdade, somente a Deus. Uma monarquia papal absoluta
com o báculo dourado não se combina com o cajado de pau do bom
Pastor que com amor cuida das ovelhas e as confirma na fé como pediu
o Mestre (Lc 22,32).
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