FLORAS DO NOVO MUNDO / PLANTA DO JARDIM BOTÂNICO DA AJUDA ANA LUÍSA JANEIRA & MÁRIO FORTES 07-09-2003 www.triplov.com |
FLORAS DO NOVO MUNDO: CURIOSIDADES E RECURSOS (5) Concepção, construção e conservação Urge, consequentemente, realizar uma abordagem a esta temática omissa, mediante análise profunda da documentação subsistente. Contudo, as restrições inerentes à vastidão do tema dificultam o desenvolvimento de uma abordagem global, limitando-se o presente discurso à distinção da originalidade de algumas das soluções adoptadas. Os objectivos económicos e políticos que presidiram à decisão régia foram suportados por todo um conhecimento técnico e científico, do qual dependia a implantação, concepção, construção e tipologia de manutenção adoptada. Neste contexto, a selecção do sítio estaria estritamente dependente da conjugação de múltiplos factores ambientais que permitiriam a coexistência de exemplares de proveniências distintas. Acresce-se a estes condicionalismos, o artificialismo inerente aos critérios de organização destes mesmos exemplares, em função da sistemática específica de cada época. As soluções projectuais adoptadas no Jardim Botânico de Coimbra e no Horto Botânico dos Marqueses de Angeja ao Lumiar , nos quais interveio Domingos Vandelli, fundamentaram-se na manutenção de um espaço homogéneo adequado à exposição de uma colecção, e na preservação contígua de uma diversidade microclimática favorável à conservação de exemplares das mais diversas origens. Consequentemente, estiveram ligadas ao aproveitamento de um relevo irregular, estruturado em terraços desnivelados, e à preservação das diferentes exposições à radiação incidente e ventos dominantes, demarcando-se, assim, o carácter coleccionista e a exposição de curiosidades marcadamente científicas. Completamente distinto, o Jardim Botânico da Ajuda está aparentemente vocacionado para a aclimatação, cultivo e experimentação de espécies botânicas de restritas e inferiores latitudes, pela sua exposição a Sul, pelo declive natural da encosta em que se insere e pelo abrigo de ventos dominantes. A latitude equivalente do local predestina-o à maioria das culturas tropicais, favorecendo espécies oriundas do Brasil, Índia e África . A selecção do local, a concepção, e a construção deste jardim e das infraestruturas que o sustentam demonstram um grande saber, não só taxonómico, mas também prático de fitossociologia e ecologia dos distintos exemplares botânicos. Na concepção de todos eles reflecte-se a experiência de Vandelli e de Mattiazzi em Pádua, compreendendo-se as semelhanças indiscutíveis com o jardim botânico desta cidade, cujas origens remontam a 1545. A distribuição das respectivas classes baseia-se na composição regular de unidades ou espécies, repetida axialmente na Ajuda, e centrífugamente em Coimbra. O aproveitamento dos desníveis, pela exploração de panorâmicas e pela demarcação estética e funcional de eixos, é uma constante que individualiza estas composições como impressão indelével dos seus projectistas. Destaque-se, contudo, a sujeição conceptual da obra da Ajuda às excepcionais dimensões da área experimental e à amplitude da paisagem dominante, e a de Coimbra ao reconhecido interesse da classe ou quadro das classificações. A esta intencionalidade evidente, de demarcação de objectivos e programas aquando da instituição, acresce-se o rigor técnico projectado na concepção e construção do Jardim Botânico das Reais Quintas do Paço de Nossa Senhora da Ajuda. A exequibilidade do projecto original, dependendo de objectivos restritos (neste caso da instalação e manutenção de uma colecção botânica e de uma vasta zona de ensaios), reflectiria os conhecimentos técnicos do seu promotor e um considerável suporte científico - É impensável atribuir a versatilidade estrutural e respectivo requinte a mero rasgo artístico de um arquitecto ou jardineiro, ou à reconhecida mestria de artífices portugueses. A concepção, a implantação e a construção evidenciam, por conseguinte, não só saberes adquiridos de forma empírica ao longo de séculos (no âmbito de materais, técnicas de construção e manutenção), mas também a aplicação de adquiridos pelo incremento das ciências exactas (na concepção, no traçado e, principalmente, na implantação de estruturas, infraestruturas e terraplenos). No que lhe respeita, o traçado e a implantação, que extrapolam o vulgar em Portugal, basearam-se num vasto conhecimento acumulado ou importado, permitindo um rigor poucas vezes atingido no país, e no qual se poderá eventualmente identificar o desenvolvimento destas ciências e a experiência e competência dos técnicos de então, nomeadamente de Manuel Caetano de Sousa, Arquitecto e Coronel do Real Corpo de Engenheiros. Nesta perspectiva, de técnica preeminente, integra-se a obra da Cascata, ou do Lago Grande, cuja feição decorativa, intencionalmente naturalista, dissimula artifícios e engenhos indispensáveis à subsistência da colecção de plantas aquáticas. Na base da peça, diversos compartimentos de pedra asseguraram condições adequadas à conservação das mais diversas plantas, pelo controle individualizado das características do solo, da profundidade da água e da respectiva circulação interna. Deste modo, conservaram-se os Scirpus maritimus Lin., Scirpus lacustris, e Scirpus palustris minor , o Panicum arenarium , o Potamogeton natans , as Lysimachia ephemerum e Lysimachia vulgaris , o Juncus subunifolius, n. sp. e o Equisetum elongatum Willd. ., e ainda, os Salix alba, Salix babylonica, Salix atrocinerea, e Salix vitellina . e talvez alguns exemplares de Nymphaea alba ,de Scrophularia aquatica , e de Typha latifolia . Restringe-se, desde então, a admiração geral às soluções técnicas patenteadas, relegando-se para um plano de somenos importância a actividade desenvolvida pelo canteiro João Gomes na criação dos grupos escultóricos e motivos decorativos da Cascata - Tantas vezes apelidada de “insólita”. Contas e notações de pagamentos efectuados datam desde 1787 a criação de golfinhos, conchas, búzios, cavalos marinhos, patos e um peixe, aos quais se reuniram as enigmáticas “cobras emroscadas” e as “cobras giboyas enroladas a huã arvore” . Em 1795 a obra naturalista continuava, tendo sido executadas e instaladas pedras com “hum sapo rodeado de folhas tabuas” . Na Cascata do Real Jardim privilegiaram-se imagens da Natureza e artifícios da Ciência, dispensando-se as alegorias mitológicas e os motivos decorativos religiosos do passado. Fontes de inspiração não faltaram - Nos Estabelecimentos Científicos contíguos enriquecia-se o “copiosissimo Erbario das Colonias” , compilava-se a “colleção de differentes vistas do Brazil” e procedia-se à catalogação de peixes, conchas, aves e minerais ; - No quadro das classificações botânicas sobrevivia a vasta colecção. Nesta área do jardim, compartimentos de lagedo demarcaram não só a rigidez do sistema de catalogação vigente, mas também exigências práticas inerentes à conservação da Classe - A construção de limites de cantaria evidenciaria os distintos exemplares botânicos e facilitaria a conservação das unidades autónomas específicas, pela redução dos encargos de manutenção. Contudo, a versatilidade pretendida aquando da sua execução não garantiu a subsistência desta estrutura, sujeita às contestações formais de Brotero: “O Jardim Botânico foi fundadoá ma- neira dos antigos Jardins, e sem classificação alguã scientifica, posto que nelle hajão muitas plantas nova e uteis á Medicina, Agricultura e Artes; para o reformar e estabelecer á moderna, pelo methodo, com que for- mei o da Universidade de Coimbra, seria necessário arrancar todas as plan- tas, todos os ornatos de buxo, e caixas de lagedo do terreno superior, aonde elle se acha estabelecido; os trabalhos desta reforma durarião alguns an- nos, nelles se perderião muitas especies, e as despezas serião enormes.” Embora documentos diversos confirmem esta informação, não são suficientemente explícitos quanto à configuração original da Classe, e por conseguinte, insuficientes para a fundamentação de reconstituições contextualizadas. Imagens esterotipadas dificultaram a apreensão da originalidade conceptual do Jardim Botânico da Ajuda, bem como das práticas e técnicas antigas que asseguraram a sua conservação. A necessidade de reflexão é óbvia - Exige-se a análise consciente de testemunhos e o abandono de preconceitos. Assim, da leitura atenta da “Relaçao da origem, e estado prezente do Real Jardim Botanico, Laboratório Chymico, Muséu de Historia Natural” destaca-se a observação de Vandelli, que poderá indiciar o recurso a infraestruturas específicas: “No plano inferior ainda se devem por os canos de chumbo pº fazer facil a rega, dos quaes a major parte estavão feitos, e o Dezemb.or os mandou hir p.ª a Quinta de baixo. ” Evidencia-se o propósito de facilitar as operações de rega no plano inferior do jardim, pela instalação de canos de chumbo - Sem descrição minuciosa das soluções utilizadas, poder-se-á subentender distinções entre canos destinados a rega e condutas de adução de água a lagos, já executadas há data. Justifica-se, consequentemente, o discurso fundador pela viabilização técnica da extensíssima área experimental, cuja manutenção exigiria vastos recurso humanos, nomeadamente a nível da rega, se exclusivamente executada de forma manual. Neste contexto, do qual se destacou a gestão integrada de Vandelli, importa realçar a actualidade das preocupações de Brotero na concretização atempada e consciente das operações de manutenção: “No Jardim as regas de verão e em tempos secos, a colheita de semen- tes, as sementeiras, mondas, tosquias, e outros trabalhos de agricultura se não se fizerem no tempo competente, todo o Jardim ficará perdido, e mal se poderá restabelecer com grandes despezas, ainda mesmo depois de muitos anos.” |