FLORAS DO NOVO MUNDO / JARDIM BOTÂNICO DE COIMBRA /Desenho s/ planta de 1962 ANA LUÍSA JANEIRA & MÁRIO FORTES 07-09-2003 www.triplov.com |
FLORAS DO NOVO MUNDO: CURIOSIDADES E RECURSOS (6) Balanço final: das condições de existência à sobrevivência As exigências programáticas justificaram a estruturação e compartimentação da cerca, com 3,5 hectares em zonas específicas, nomeadamente: a Classe (quadro das classificações ou escola prática de botânica) e as estufas na plataforma superior; as escolas experimentais e os viveiros na plataforma inferior. A par disso, na zona ocidental, o Arboretum, e nos edifícios anexos, o real Museu de História Natural, a Casa do Risco e demais estabelecimentos científicos. Programa semelhante orientou o complexo académico, ao englobar um Jardim Botânico, “Horta Pharmaceutica”, a sementeira, as Estufas, e a “Salla grande das Plantas” . Todavia e apesar das semelhanças, a originalidade do complexo palaciano advém das consideráveis dimensões da zona experimental, a qual excede o somatório das restantes (incluindo a classe, o arboretum e os restantes viveiros). Por isso, esta constatação relembra os objectivos defendidos aquando da instituição. Se imperassem na Corte as ideias políticas, sociais e económicas que proliferavam na restante Europa, o carácter de necessidade associado à zona experimental, teria sido acrescido, obviamente, de um cuidado mais esmerado na respectiva colecção: “Huma similhante Collecção deplantas eu já ti- -nha determinado fazer neste Real Jardim Botanico, como apareceu no risco enapreparação do Catalogo domes- -mo feito no anno de 1769, mas como nelle por cauza de fazerse passegios mais agradaveis, se diminui o terreno necessario pelas ditas plantas; assim agora o dito não pode conter tantas variedade deplanta, senão extenden- -dose até aIgreja da Memoria, oufazendo se este jar- -dim economico em huma das Quintas de Alcantara, ou em qualquer outra parte; pela cuja despeza po- -deria Concorrer huma parte do Subsídio Literario.” O programa iniciado, sendo dominado pela recolha de exemplares e pela análise das potencialidades económicas correspondentes, relegou para plano secundário o rigor sistemático que deveria presidir à organização das colecções. A aplicação de critérios taxonómicos nem sempre foi concretizada de forma racional na catalogação das colecções (que talvez tenham atingido o discutível número de 5.000 espécies), tal como constatado e contestado por Johann Heinrich Friedrich Link em 1798, durante uma visita: “...porque tudo o que se recebe é plantado, e à natureza se deixa o cuidado do posterior desenvolvimento. Succede tambem que para êste Jardim são mandadas muitas plantas do Brasil e de outras partes. Nesta ocasião encontro aqui algumas plantas de especiaria, que estão crescendo para serem enviadas para o Brasil, afim de serem alli cultivadas. Não se pense, porém, que tudo aqui seja feito com grande apuro: Vandelli folheia o systema vegetal de Linneu, da edição de Murray, e se encontra alguma descrição que combina com a planta, põe-lhe imediatamente o nome, sem mais averiguação alguma...” As actividades visionárias dos primeiros tempos, que contemplavam de forma arrojada a construção e a experimentação das plantas económicas, foram gradualmente substituídas pelo incremento de uma colecção de curiosidades botânicas de envergadura condicionada, dissonante da estrutura projectada e dos objectivos pretendidos na origem. Em simultâneo, privilegiaram-se as potencialidades recreativas e lúdicas de um dos poucos da Corte da Ajuda “que offerece uma linda vista do rio e do mar” . Como consequência, assume-se o não cumprimento do que fora previsto, reduzindo-se a exploração das potencialidades económicas das diversas culturas oriundas e cultivadas no Brasil e noutros domínios, em prejuízo da política moderna: “Não he bastante ter produçoens tão estimadas no Commercio como Aroz, Cafe, Cacau, Canella, Tabaco, Anil, Algodão, Urcella, Arxote, Quina, Assucar, Cocinilha, Vainilha, mas he necessario se dellas tirar amaior vantagem possivel ou Com a Agricultura, ou com as providencias economicas...” À investigação e experimentação consciente destes recursos imprescindíveis, embora realizada de forma precária, sucede uma fase de afastamento dos objectivos primários. Se se acrescentar a este facto a desorganização técnica percebe-se como ficou condicionado na sua subsistência institucional, funcional e estrutural. Durante este período, um dos mais críticos da história nacional, ressalva-se a direcção de Brotero que garante, desde 1811, a gestão de encargos incomportáveis e de escassos financiamentos. Embora a sobrevivência como estabelecimento técnico e científico tivesse sido questionada pelo afastamento da Corte para a Real Quinta de Queluz, logo após o incêndio do paço abarracado em 1794, e pelas avultosas verbas orientadas para a construção do Novo Paço Real, apenas se tornou clara a sua descontextualização na conjuntura política das primeiras décadas de oitocentos. A estratégica fuga da Família Real em 1807, a abertura comercial do Brasil e a criação do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves tornaram obsoleta a pesada estrutura. Nesta fase de perturbações internas, prolifera a subjectividade na organização da colecção botânica, remetiam-se várias das espécies originárias do Brasil para as estufas dos reais ananases e relevava-se sem propósito imediato a importância do feijão e da fava, e das indispensáveis abóboras de carneiro, abóbora cabaça, garrafal, cabacinhas verrucosas, cabacinhas riscadas, abóbora menina ou moganga, porqueira e chila . Mantinha-se a falta de coerência na aplicação de um sistema de catalogação, tal como verificável no “Catalogo geral de todas as Plantas do Real Jardim Botanico d’Ajuda distribuidas segundo o Systema de Linneo, da edição do D.or Wildennow”, manuscrito de Felix de Avellar Brotero. A entropia reflectiu-se, também, na proliferação indistinta e quase aleatória de remendos, construções provisórias e espacinhos murados, de compatibilidade duvidosa com as regras impostas pelo sistema de classificação então vigente. Por isso, passaram a existir no magnífico Jardim Botânico das Reais Quintas do Paço de Nossa Senhora da Ajuda, o Horto médico , o Bosque , o Hortinho e o Arvorinho , local onde mais tarde seria integrado o novo Jardinette de flores raras e proprias de todas as estações . A construção de alguns destes espaços, de feição e designação popular, quase sem paralelo nas mais conceituadas instituições científicas da época, seria apenas compreensível quando integrada num contexto cultural nacional de improviso versátil, situação de decadência reafirmada irreversívelmente pela independência do Brasil e guerra civil. Concluindo, o primeiro quartel do século XIX põe termo à importância e utilidade do Jardim Botânico das Reais Quintas do Paço de Nossa Senhora da Ajuda como estabelecimento científico indispensável á dinamização de uma economia fragilizada.
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