Apesar de o ambiente descrito por I. Vilhena Barbosa, em meados do século XIX, ser encantador, qual deleite para o nosso imaginário actual, tome-se, como exigência do método de investigação, a necessidade de uma vigilância passível de se exprimir assim: o imaginário retrospectivo pode funcionar sob formas de bloqueio epistemológico.
Interpretação frequente
Tem-se afirmado, muito frequentemente, que o Real Jardim Botânico do Paço de Nossa Senhora da Ajuda terá sido uma obra aparentemente anacrónica, desde sempre. Isto acontecendo porque manifestaria alguma resistência aos novos conceitos europeus, na medida em que nasce dependendo de um estilo decadente e de uma intencionalidade limitante, ou seja: - a magnificência de um barroco tardio, pela sua concepção; - e a formação de um futuro soberano, pelos seus objectivos.
O conjunto arquitectónico não apresentaria adequação manifesta com as caracerísticas impostas pelo mundo das formas mais criativas, suas contemporâneas. As exigências pedagógicas condicioná-lo-iam, logo no início, porque não o projectariam para outros destinos, que não a educação de princípes. Aparece, por conseguinte, como uma instituição desajustada e limitada à partida.
Aparece, igualmente, como um dos muitos exemplos de inoperância e ineficácia à portuguesa.
Aparece, finalmente, conservado segundo este modelo interpretativo.
Na verdade, tendo sido, e sendo ainda, esta a interpretação dominante, tem sido ela que tem servido de fundamento para aspectos não menos significativos de uma série de programas e obras de conservação, recuperação e restauro.
Contudo, esta interpretação, quase deturpadora pode ser contestada por documentação comprovativa da sua importância económica e social, bem como por conhecimentos técnicos e científicos, que lhe imprimiram características especiais, da concepção à construção.
Assim, adiante-se que este caso, como muitos outros da História das Ciências em Portugal, demonstra quanto o contacto-convívio com as fontes primárias é imprescindível e só ele evitará que não se acumulem erros, porque a consulta é limitada e se desconhecem os primeiros testemunhos.
Assim sendo, importa perceber, de que modo e porque meios, este jardim foi desenhado e originalmente mantido, ou seja perceber como nele se concretiza a exigência de: - seleccionar certos objectivos manifestamente económicos; - com vista a materializar a sua dependência de um contexto fisiocrático forte.
Visão que se impõe, em detrimento da que o tem considerado na dependência limitante imposta pela educação dos princípes, de acordo com estes princípios: - a natureza educa-se; - para se conseguir uma realeza educada é preciso capitalizar os contributos científicos.
Se é verdade que as ciências cobrem, além de muitas outras intencionalidades da governação à justiça, o léxico disciplinar moderno, nomeadamente sob a forma do ensino, pois equivalem a uma intervenção cultural, luz a iluminar a mocidade. É também verdade que o Jardim Botânico da Ajuda revela ainda outra das suas facetas pragmáticas: a necessidade de uma botânica para aplicação bem orientada e rentável na agricultura.
Constituindo-se como campo para a aplicação dos saberes fundamentados da nomenclatura e taxonomia, as práticas agrícolas, contribuirão, por sua parte, para mostrar como é urgente levar as conquistas científicas para o sistema social, porque o ócio e a desordem devem ser geridos e controlados através de hábitos de trabalho eficazes e de métodos rigorosos, nos estados modernos.
Discurso fundador
Por isso, quando a panorâmica geral do reino já vinha a provar que “Não ha quem se aperfeiçoe na Historia Natural pª poder adiantar a Agricultura, Economia e descubrir novos generos pª augmentar o Commercio” , torna-se evidente que importa tomar decisões no sentido de se multiplicarem os meios humanos e técnicos, com vista a superar esta deficiência estrutural, nos seus diferentes níveis.
Assim por ordem régia “se transmutou a Quinta de Frutta e Hortalize do Palácio velho da Ajuda em Jardim Botânico” , acto legislativo, associado a medidas concretas, das quais Domingos Vandelli releva:
“O meu ordenado, q. S. Magde o Snr. Rei D. José me determinou no anno de1764, e que se pagava na Caza da Moeda, passou o seu pagamento no Real Erário como Director do Real Jardim Botanico, e no mesmo Erario se pagava tãobém o ordenado do Jardineiro.”
Foi ainda possível reunir fundos que vieram facultar uma melhor distribuição de tarefas no conjunto da direcção técnica, condição para uma eficiência profissional melhor distribuída em termos funcionais:
“Pela ordem, que no anno 1768 tive do Snr. Rey D. José de glorioza memoria, de estabelecer hum Jardim Botanico, mandei vir de Padova Julio Mattiazzi, q. tinha instruido nas minhas viagens do Ducado de Milão, e que me servia no Muséo, q. na sobredita Cidade possuia.”
A documentação disponível permite uma análise sobre a estrutura interna do jardim que é passível de ser lida deste modo: - por um lado, os enunciados do discurso fundador inscrevem a urgência de dotar o país com estabelecimentos científicos destinados à investigação, experimentação, promoção e ensino de práticas agrícolas; - por outro lado, como o rigor científico pressupõe regras, servindo para organizar, controlar, gerir, capitalizar o espaço e o tempo requeridos pelo Iluminismo, servirá seguramente, e com forte razão, a Fisiocracia.
Enquadramento programático
Disto se infere quanto o Jardim Botânico das Reais Quintas do Paço de Nossa Senhora da Ajuda precisa de ser inserido no discurso agrícola da época, onde avultam teses requerendo uma política orientada por um imperativo preciso: Os Três Reinos ao Serviço do Reino.
A época apela para medidas imprescindíveis, com relevo para a necessidade e o interesse de haver: - estruturas de apoio com destaque para uma Junta Agrícola enriquecida por um Gabinete de Livros Agrícolas , onde se juntem obras para informação e actualização dos utentes; - dispositivos dinamizadores de uma utilidade acrescida, no que respeita o incremento produtivo (exemplo: cochinilha colhida mais vezes, melhor escolhida e preparada para embarque em direcção à metrópole); - patrocínios destinados a seleccionar e implementar uma colecção de plantas manifestamente úteis reunidas num jardim económico (exemplo: numa área próxima da Igreja da Memória ou numa das Quintas de Alcântara ); - conteúdos de ensino com componentes de aplicação, nomeadamente numa cadeira de agricultura na Universidade de Coimbra .
Na verdade, é preciso que as estratégias estipuladas pelas Faculdades estejam associadas à operatividade das Artes, de modo a que haja um planeamento em termos de eficácia; caso contrário “não setendo ate agora executado tão util fim ficarão estes despendozos estabelecimentos de simples curiozidade”
Por isso, são motivo de lamento os exemplos onde “Não ha quem se aperfeiçoe na Historia Natural pª poder adiantar a Agricultura, Economia e descubrir novos generos pª augmentar o Commercio.”
O que não impede uma perspectiva mais global estilizada a partir deste tom optimista:
“Como he mto vantajoso, q.
estas Sciencias se espalhem mais
na Nação e todos não podem fazer
hum curso completo destas Sciencias
nem frequentar a Universidade
me pareceria util estabellecerse
como se-fez da Mathematica alguas
Aulas nesta Corte aproveitando-
-se dos Museus, Laboratorios Chy-
-micos e jardim Botanico.”
“E havendo na Ajuda hum dos mais
ricos Moseos de Historia Natural,
Jardim Botanico, e Laboratorio Chy-
mico seria conveniente, q. o publico
se aproveitase destes grandiozos estabele-
ciemntos erigindo huã Cadeira de Histo-
ria natural e Demonstração de Chy-
mica.”
A euforia das intenções deparou-se com barreiras fortes. O princípio do desejo ficou atrofiado pela realidade. Por isso, até já houve ideias de Vandelli que não passaram do risco.
Mas o pior veio depois. Mesmo o que se conseguiu pôr de pé, durou pouco. À falta de boa manutenção, muitas concretizações forma sendo adulteradas rapidamente.
Certos sonhos de Brotero ficaram bloqueados por diferentes impasses; tradições imobilizadas, aniquilosamentos conservadores, burocracias emperradas.
Também aqui, afirme-se claramente, a capacidade de persistir não soube ser fiel aos desígnios institucionais do projecto inicial.
Tente-se ainda outra abordagem. Nasceu antes da Reforma Pombalina da Universidade. Aliás, é como que um sopro anunciador do seu espírito.
Implementou-se aquando das medidas políticas mais decisivas, visando uma estrutura académica moderna para Portugal.
Porém, apesar das estratégias serem fortes, remanesciam formas da intelectualidade portuguesa anterior; muitas manifestações da estrutura moldada pelo ouvir-ler, algumas brechas afoitas ligadas ao sistema do olhar-ver; dificuldades de implementação para o paradigma do observar-experimentar.
Aprofundando as causas mais determinantes diga-se, pois, que os bloqueios práticos estavam subordinados a outros tantos bloqueios epistemológicos. Ou seja, a configuração geral possibilitou-lhe uma primeira existência bem sucedida, mas não o dotou com um perfil económico resistente ao futuro.
Nada disso autoriza, contudo, que se induza uma descrição sem valorizar a sua ligação à dinâmica fisiocrática, no que ela tem de exploração dos recursos, no caso, a flora dos Novos Mundos.
Convenhamos quanto a perspectiva de grandes realizações aplicadas, em que se apoiava o discurso original, se veio a tornar precária, numa época relativamente próxima, pois dela podia dizer Beckford, no ano de 1787:
“O Jardim é muito agradável; está situado numa eminência, e plantado de esbeltas árvores e de flores. Acima dos seus mais altos ramos ergue-se um largo e magestoso terraço com uma balaustrada de mármore de deslumbrante alvura e dum estranho estilo oriental. Neste país desenham mediocremente, porém executam com grande perfeição e acabamento. Nunca vi balaustradas mais bem cortadas ou cinzeladas do que as que ladeiam os degraus que conduzem ao grande terraço cuja vasta superfície é dividida em longos compartimentos de mármore, contendo poucas variedades de heliotropios, áloes, gerânios, rosas da China e outras plantas mais comuns das nossas estufas. Estes pesados canteiros têm um triste aspecto; fazem-nos lembrar um cemitério; e eu fiquei impressionado, como se visse sair da terra os defuntos habitantes do palácio vizinho na forma de espinheiros, de figueiras da Índia, de pomposos malvaiscos e de copadas pimenteiras.”
Maldizer de fora?
Cepticismo de olhar estrangeiro?
Aceitem-se as observações como justas, mas coloquem-se no devido tempo.
Por outras palavras, insista-se no seguinte: a documentação fornece provas de que nunca este tipo de observações pode ter sido proferido, com justeza, a respeito da fase incial.
Na verdade, apesar de todas as dificuldades, no princípio, as raízes prosperaram, com troncos viçosos e frutos úteis.