FLORAS DO NOVO MUNDO / JARDIM BOTÂNICO DA AJUDA ANA LUÍSA JANEIRA & MÁRIO FORTES 07-09-2003 www.triplov.com |
FLORAS DO NOVO MUNDO: CURIOSIDADES E RECURSOS (2) As características das tarefas recobrem formas especiais de criatividade, quase parecendo desafiar, e porque não parecendo simular?, princípios divinos impostos desde os Génesis, pois actuam nos limites do artificial para aumentar o universo natural. Esta situação que, à sua maneira, também concorre para o questionamento do teocentrismo medieval, merece ser considerada entre os elementos constituintes, quando se traça a arqueologia do sistema antropocêntrico de aculturação da Natureza. Sistema denunciado pelos programas ecológicos e bioéticos, nos extremos de um longo processo. Aspectos reunidos numa mentalidade propícia à virtualidade de espaços, desejados, concebidos e construídos como visibilidades para o saber-prazer, no quadro das novas modalizações intelectuais. Estruturas que passam à realidade, a partir da experimentação de tecnologias inovadoras postas ao serviço de paisagens idealizadas, sob intuitos de bem-estar, justiça social e conhecimento colectivo. Tudo revelando um pano de fundo associado a sonhos remanescentes de um qualquer paraíso perdido. As luxúrias do Éden brasileiro e do Eldorado mexicano alimentam magias lembrando o Éden bíblico, despido da transcendência e da religiosidade iniciais. Numa via prospectiva, em prol da concretização terrena, levantam-se arquitecturas feitas de pedras ou de vegetais. As cenografias humanas e as cidades resultantes são esquadrilhadas pela razão urbana segundo itinerários controlados, com praças acolhedoras e vazios destinados a jardins. Porque, apesar de tudo, a felicidade é possível na terra, assim proclamava em tom profético Saint-Juste. Como noutras épocas, também aqui a projecção idealizada de um modelo de homem e de sociedade não prescinde de um discurso utópico com elementos especiais - os jardins. Só que neste momento, eles entram numa configuração epistémica, onde avultam algumas novidades, seus elementos predominantes: - o ver e o observar ocupam papeis de primeira importância, provocando circuitos sensoriais complementados por aparelhos, da balança ao microscópio; - a modalização da flora exprime uma vegetação enquadrada por artifícios mentais, da classificação à taxonomia; - a relação natura-cultura inicia um percurso prolongado, de que somos, ainda hoje, um efeito tantas vezes deturpado. Porque, apesar dos limites impostos por outros termos vigentes no sistema - colonialismo, escravatura, despotismo, diplomacia enganosa, febres, corrupção, mentira, ignorância, etc. - o espírito de harmonia continua a presidir aos destinos da História Natural e da Filosofia Natural. A composição deixa de estar submissa ao absolutismo régio - a linha ondulante de feição naturalista substitui a estruturação axial rígida, a continuidade predominantemente racional é subvertida por certas descontinuidades. A concepção da paisagem risca pautas contestatárias, na exploração das potencialidades cenográficas, na diversidade e enriquecimento florístico e na sua articulação com as áreas envolventes. As novidades espalham-se e espalham programas de execução. Assim, por períodos precisos, os modelos franceses não encontram grandes resistências. Assim, os modelos ingleses do primeiro quartel do século, marcadamente fisiocráticos, assentam em lógicas e conceitos que acabam por se infiltrar nos principados germânicos, e posteriormente na restante Europa. Planeados ao sabor de sonhos e modas, criados com colecções florais e mantidos por dispositivos de rega específicos, os jardins reflectem, consequentemente, interrogações de Voltaire ou pincípios de Rosseau, ao levarem para a paisagem o mundo mental de setecentos. Este mundo espraia-se entre as ordens cósmicas e mitológica, entre os conhecimentos científicos ou técnicos, incluindo um aparato botânico florescescente, misturado com imperativos ditados pela economia. Menos dependente da inteligibilidade por via da razão, depurada de enfeites e purificadora de excessos, a paisagem construída coloca-se ao lado da espontaneidade, ao colher modos de ultrapassar a inflexibilidade do traço linear. Emergência que virá a dar, depois, a volumetria teatral conseguida através de sobreposições de cenários, onde o todo se abarca menos, onde a perspectiva não jogará, por certo, o seu melhor, mas onde surgem espaços e tempos para a intimidade, na ausência de grandes planos. A razão continua soberana, ou não fora ela o estigma dominante do paradigma moderno, todavia vai ser obrigada a ceder áreas para o desenvolvimento da linha curva, do barroco ao rócócó. Este diálogo de linhas, por onde se estendem gostos de requinte, que levam para os jardins copas montadas e enfeites rebuscados, alcançam o máximo do engenho em labirintos misteriosos e topiárias talhadas com muita fantasia. Concluindo, com os esforços para descobrir as leis da natureza, os cientistas sistematizaram e classificaram a natura, constituindo-a como campo privilegiado para as actividades geológicas, botânicas e zoológicas; com os esforços para levar a mão do homem ainda mais longe, alimentou-se a ideia de paisagens mais sofisticadas, possibilitadas pelos adquiridos tecnológicos e técnicos, conquistando-as por via da cultura. Passaram séculos, mas permanecem marcas deste processo. Por isso, somos o elo mais recente de uma cadeia, iniciada com as atitudes de curiosidade ou de interesse nos recursos, por via das floras do Novo Mundo. Por isso, a genelogia da relação Natura-Cultura dominante continua a passar por elas, como foi assinalado durante a Eco 92. |