Os Descobrimentos e o Renascimento alteraram a envolvência analógica que a Europa partilhava com o Criador e a Criação: O tudo em todos. O antropocentrismo afastou a Cidade de Deus que tinha servido de modelo ao burgo medieval. A curiosidade questionante investiu na realidade material. O humanismo dessacralizou proibições de outrora. Enquanto isso, os recursos naturais aumentavam por via de novos mercados fornecedores. Em suma, tudo mudou, para sempre.

Como o modelo teocêntrico se encontra diminuido no seu horizonte, transformados são também os níveis existentes nas relações entre Cultura e Natura. Descendo ao particular, esta mudança manifesta-se quando as ciências passam a absorver o alargamento do seu campo de estudo e aplicação, relativamente aos seres vivos: A lógica dos semelhantes e diferentes, concebendo multiplicidades individualizadas. A descontinuidade é complexa. Por isso, implica gestos e efeitos num tempo igualado a uma longa duração.

Razão pela qual, é só a partir do século XVIII que estão reunidas condições para um momento singular, ou seja, para que o surto continuado de trocas entre o Velho Mundo e o Novo Mundo - mescla de ideias palavras ou coisas - possa ser dinamizado por uma efervescência intelectual apostada em perspectivas sócio-políticas revolucionárias. A fundamentação filosófica decorrente encontra adeptos entre quem é contra a inércia absolutista e a origem do poder régio, por direito divino, através de ideários tendendo para uma sociedade à procura da igualdade, fraternidade e liberdade. A restruturação social, pautada por utopias orientadas para o melhor dos mundos, recorre ainda a formas e enquadramentos idealizados, do simbólico ao real, dos cenários de ópera aos cenários de jardim.

Tem-se afirmado, muito frequentemente, que o Jardim Botânico das Reais Quintas do Paço de Nossa Senhora da Ajuda, obra aparentemente anacrónica, manifesta alguma resistência aos novos conceitos europeus, pois nasce dependendo de um estilo decadente e de uma intencionalidade limitante. Contudo, esta interpretação, quase deturpadora, pode ser contestada por textos comprovativos da sua importância económica e social, bem como pelos conhecimentos, técnicos e científicos, que lhe imprimiram características especiais, da concepção à construção.

A documentação disponível permite uma análise sobre a estrutura original do jardim que é passível de ser lida deste modo: Por um lado, os enunciados do discurso fundador inscrevem a urgência de dotar o país com estabelecimentos científicos destinados à investigação, experimentação, promoção e ensino das práticas agrícolas; Por outro lado, o rigor científico pressupõe leis e impõe regras, servindo para organizar, controlar, gerir, capitalizar o espaço e o tempo requeridos pelo Iluminismo, donde servirá seguramente, e com mais forte razão, a Fisiocracia.

Como outras situações frequentes na História das Ciências em Portugal, esta situação historiográfica demonstra quanto o convívio com as fontes primárias é imprescindível, para se evitarem erros acumulados, com base em fragilidades heurísticas ou hermenêuticas parcelares.

Coube ao século XVIII definir, por forma globalizante, os adquiridos mais significativos e os problemas mais persistentes, relacionados com as estruturas epistemológicas, mundividências sensitivas e fenómenos naturais, decorrentes dos Descobrimentos e do Renascimento.

Nessa altura, não sem grandes ambiguidades, a Europa assumiu um processo de amadurecimento cultural e civilizacional. Maturação teórica e prática, na sequência das novidades, mudanças e questionamentos, introduzidos ao longo das surpresas ocasionadas pelo contacto com os Novos Mundos.

Esta configuração epistémica abrangente, que desperta com a modernidade, emerge entre debates ideológicos e polémicas apaixonantes - sejam as diferentes posições face aos índios, ou de um modo mais envolvente, relativas ao direito natural -. Riqueza intelectual sempre acompanhada de outra riqueza, dada a presença maciça de múltiplas materialidades importadas - os produtos dos Três Reinos da História Natural, empacotados, empalhados e apenhados em pipas, caixotes ou caixões, como lhe chamavam os naturalistas.

O afluxo de bens movimenta de um modo especial dos europeus se relacionarem com os objectos. Logo a partir do século XVI e no que respeita o aumento da representatividade específica do Segundo Reino da História Natural, o enriquecimento da flora identifica-se, em si mesmo, com ideias e conteúdos associados à palavra «expansão»: Em sentido real - estender, desdobrar, abrir; em sentido figurado - desenvolver, explicar, expor. Na verdade, faz-se acompanhar de gestos taxonómicos com impacto botânico notório, tendo a montante e a juzante desenvolvimentos práticos e técnicos, postos ao serviço de fenómenos de aclimatação, nomeadamente em circustâncias onde o poder faculta o saber.

Conjunto muito real e palpável onde se jogam encontros entre o mesmo e o outro, a actividade de aclimatar pressupõe o conhecimento das características da planta nova, ou pelo menos se é capaz de a colocar entre aquelas com as quais já se está familiarizado, ao criar meios efectivos que convidam a vegetação endémica a partilhar terreno com as «espécies raras.

Da mestria para possibilitar o crescimento do exótico em solos menos adaptados, resulta uma maior extensão da matéria cultivada, quer ela se destine ao consumo alimentar - hortas -, quer esteja designada para produção de fármacos ou deleite em tempos de recreio - hortos-. Os cuidados requeridos misturam saberes tradicionais e inovações metodológicas, num composto feliz entre ciências, artes e ofícios. É o naturalista que a identifica, colhe, encaixota e classifica, dando-lhe um nome e dispondo-a em quadros. É o arquitecto que projecta conjuntos, sem esquecer o porte desmesurado das árvores exóticas, da araucária à palmeira. É o jardineiro que descobre sistemas de rega e de enxertia adequados à natureza da planta recém chegada. É o cenarista imaginando sobreposições de perspectiva onde se integrem os lugares mais adequados para que o diálogo floral não se converta em monólogo. Se não fora um abuso anacrónico, que a História das Ciências convém repudiar, dir-se-ia que a construção deste objecto obriga a uma equipa interdisciplinar.