OS PRODÍGIOS DA LÍNGUA
Ana Hatherly

Agradeço aos organizadores deste Encontro terem-me sugerido o título da minha comunicação, o qual, parafraseando o meu livro A Experiência do Prodígio, me encaminhou directamente para ele sem que eu tivesse de fazer qualquer esforço.

Considerando o tema geral deste Colóquio, tudo me encaminharia no sentido de fazer uma aproximação entre os processos da prática da alquimia - originalmente relacionada com o secreto processo de transmutação de metais vis em puro ouro - e os da prática da escrita, originalmente ligada a uma determinada concepção do segredo, que, operando com um material tão dúctil como é o vulgar material da língua, procurava obter construções que fossem, tanto quanto possível, incorruptíveis na sua consistência intrínseca, aspirando a um eterno (a memória ou a fama) que se opunha a um efémero (a vida) , o que equivalia a um ideal de perfeição.
Porém, como não sou especialista em matéria de alquimia, não me sinto preparada para fazer uma abordagem comparativa. Por outro lado, embora seja para mim evidente que existe uma íntima relação entre o segredo e o sagrado, também não irei aqui ocupar-me do aspecto transcendente da palavra como verbo, que me levaria para regiões onde não desejo agora entrar. Modestamente, irei apenas abordar o aspecto construtivo que, dentro do sistema duma língua e ao serviço de uma intencionalidade concreta, a palavra pode desempenhar, tomando como exemplo a construção do objecto cultural denominado poema. Na minha opinião, nesse processo construtivo a palavra pode sofrer uma verdadeira transmutação e, de comum objecto material, transformar-se em puro signo. Nesse caso, através da escrita poética, a palavra reencontra a sua original consistência de materia prima e, se para os velhos alquimistas, a pedra filosofal é uma pedra que não é pedra, para os velhos poetas, a palavra não é só palavra: tanto no seu todo como nos seus elementos constitutivos, a palavra, sobretudo escrita, surge como uma representação do mundo como enigma, enigma que ela simultaneamente revela e mimeticamente recria.

Essa concepção da palavra escrita, que se insere numa espécie de cosmologia poética que pode ser verificada ao longo de toda a história da cultura, é particularmente nítida na Europa durante o período barroco, quando se produz uma enorme confluência de saberes antigos em que predomina um pensamento hermético aliado a um culto do prodigioso, do fantástico e do misterioso, que incendeia as sensibilidades da época e que a modernidade de então incorpora nos objectos-actos que produz. E é precisamente esse o aspecto que me remete para os meus livros A Experiência do Prodígio (1) e A Casa das Musas (2) em que é abordada e ilustrada essa questão, retomada de outro ângulo em O Ladrão Cristalino (3) e em Poesia Incurável, ainda no prelo.

Em A Experiência do Prodígio, obra que, como sabem os que a conhecem, é uma antologia de textos visuais dos séculos XVII e XVIII, verifica-se que o fundamento teórico desses textos repousa numa concepção esotérica da escrita que se apoia numa tradição que, nalguns casos, é mantida e noutros transformada, pois o pacto lúdico que então passa a dominar sobrepõe-se por vezes aos ecos de um passado que assim se des-sacraliza, Por fim, o que se verifica é que essa concepção esotérica.ora se sacraliza ora se des-sacraliza, num vai-vem alternativo que ilustra as variedades criadas pela circunstância da sua produção.

Um dos exemplos mais flagrantes de persistência de um pensamento hermético (de origem sobretudo pitagórico-cabalística) podemos encontrá-la nos Anagramas Poéticos, construções que se baseiam em fundamentos teóricos que, em parte chegaram até nós, em que a língua, ou se quisermos, a palavra, e até a letra (não se usava ainda a designação de fonema) como mais tarde viria a acontecer no Concretismo, surgem como puros signos, sinais autónomos, substantivos, que, no entanto, se integram no sistema geral duma representação múltipla: por um lado, como representação codificada do sistema verbo-voco-visual a que pertencem; por outro, como representação dum universo de significação reservado, parcialmente secreto, o qual, por sua vez, é um simile (embora imperfeito) do universo geral que é o mundo da criação, pois se o mundo é um labirinto de Deus, como dizia o Padre Nieremberg na esteira de Plotino, esse mundo é um livro, onde a criação está escrita.

Justifica-se assim a importância da letra - sinal para ser lido. Luís Nunes Tinoco, um notável poeta-pintor-caígrafo português do século XVII, é autor de uma representativa colecção de anagramas poéticos em honra da Rainha D. Maria Sofia Isabel, segunda esposa de D. Pedro II, colectânea intitulada A Feniz de Portugal Prodígiosa, que se encontra num manuscrito de 1678, reproduzido em A Experiência do Prodígio. No texto introdutório, Luís Nunes Tinoco tece as seguintes admiráveis considerações:

He o mundo todo hum grande livro de que emana a Sciencia da Orthographia: cujos Tratados são as Idades, os Capítulos, os Séulos, as folhas os annos, os paragrafos os mezes, as Regras os Dias e as Letras as Horas. Logo que este admirárel Iivro sahio a luz acabado das mãos do seu Divino Autor, teve encadernação dourada na primeira Idade de Ouro. Perdeu este Lustre por cometer erratas em o Prologo o primeiro Leytor dele.

E mais adiante escreve: Foy Adam a primeira Letra do Alfabeto Racional que Deus tirou e criou do Nada, que hé Anagramma de Adam na língua espanhola (...) Com Estrellas de brilhante ouro escreveu Deus as Letras redondas sobre o azul dos Celestes Orbes: com flores de varias cores formou Alfabetos de diferentes matizes na Terra: com aves de diversas formas delineou vistozas penadas no Ar. Nesta cristalina lamina desse humido Elemento abriu o subtil buril da Divina Providencia Letras de prata que posto sejam só Mutas, e Líquidas não deixam de se soletrar nellas innumeraveis maravilhas da Natureza, que se lêm como Agua. (...) Finalmente nesta Machína do Orbe todas as criaturas são A B C de Deos, como diz Santo Ambrosio, por onde cada natureza he huma letra cada vínculo huma sylaba e cada geração muytas dicções: não havendo criatura alguma por pequena que seja que não sirva de folhano volume do Mundo. (pp. 210-211).

Como já noutro local observei, para o pensamento da época, a representação toma-se, mais do que nunca, um espaço de reflexão, não só do visível mas do invisível e "se essa preocupação com a decifração dos sinais do oculto no visível atinge todas as formas de expressão, as artes da palavra e as artes visuais são veículos privilegiados para transmitir pela representação (e pela interpretação que suscitam) simultaneamente o oculto e o patente, o sagrado e o profano, o visível e o invisível, uma vez que, para o pensamento cristão, o Criador pode ser conhecido através da criação". (4)

Os esforços para atingir a compreensão desse saber, esteticizados no pacto lúdico que é a escrita poética, são o que nos transmitem as prodigiosas construções que são os poemas-visuais da época barroca (e seus antepassados históricos, gregos alexandrinos e medievais), construções em que o processo de codificação (que é o da sua escrita, da sua construção) é tão complexo quanto o da sua des-codificação (que é a sua leitura), representando, uma, o poder de criar, e a outra, o poder de interpretar, igualmente criador, que em si mesmo encontra a recompensa. Mas é preciso merecê-la, e assim nem todos podem aceder a ela, ou seja, nem todos atingem esse ouro, essa forma de perfeição reservada, de certo modo demiúrgica.

Considerando o Anagrama como um dos textos-visuais tipicos do periodo barroco escolhido para ilustrar esses princípios, direi que o fundamento teórico do anagrama como composição poética está claramente descrito em A Experiência do Prodígio nos textos de Alonso de Alcalá y Herrera e de Luís Nunes Tinoco, incluídos nessa Antologia, onde se pode verificar a complexa origem e a complexa prática desses enigmáticos textos-visuais que a sua construção e a sua descodificação exigem e que aqui não poderemos abordar em profundidade. Remetendo os interessados para a leitura dessa teorização, limitar-me-ei aqui a citar Alonso de Alcalá y Herrera, que na sua extraordinária obra intitulada Jardim Anagramatico de Divinas Flores, impresso em Lisboa, na Officina Craesbeckiana em 1654, onde apresenta 683 Anagramas em prosa e em verso, do ponto de vista teórico define assim o anagrama:

He pois ANAGRAMA nome Grego, cõposto de duas dicções - ANA - preposiçaõ, & GRAMMA - nome que significa letra - que delle tambem se deriva Grãmatica -, E assi ANAGRAMA val o mesmo que trãsposisçaõ de letras, porque se deriva de Anagrammatizin, que he o mesmo que trãsposiçaõ dellas, assi no escrever, como no falar: de sorte, que com as mesmas letras de hum nome, ou nomes, & periodos, trocadas as syllabas, ou as letras, se pronuncie, ou escreva outro nome ou nomes, & periodos differentes, sem que se tire nem acrescente letra algua, porque em se lhe tirando ou acrecentando, já naõ fica verdadeiro Anagrama. (pp.195-196).

Simples exemplos da aplicação do princípio do anagrama podemos ver nas seguintes transposições: Maria=Arima; Isabel=Belisa; Paraiso=Rosa Pia, etc. .Mas há aqui a notar a diferença entre anagrama e palindroma, uma vez que, se no anagrama a transposição das letras pode fazer-se por qualquer ordem, no palindroma a transposição das letras é feita apenas na leitura, sem inversão da sua ordem escrita: por exemplo: Ana que se lê sempre do mesmo modo, quer a leitura seja feita a direito ou ao revés e o mesmo se pode fazer com frases inteiras.

Voltando ao anagrama, a questão da transposição das letras complica-se quando o seu processo se aplica á construção de todo um texto. Sendo o anagrama um texto essencialmente programático, é necessário comprovar a sua exactidão, quer dizer, a sua fidelidade ao princípio estruturante, daí que os Anagramas Poéticos Aritméticos venham acompanhados do seu respectivo quadro de verificação. Considerem-se os seguintes exemplos, atribuídos a Luís Nunes Tinoco.

Em primeiro lugar, o Anagrama Poético, que faz parte da extensa obra manuscrita com data de 1678, atribuída a Luís Nunes Tinoco e intitulada A Pheniz de Portugal Prodigiosa em seus nomes Maria Sofia Isabel Raynha Sereníssima & Sra. Nossa, que já referimos e que é um prodigioso Panegirico.

 Estamos aqui perante um soneto que é um complexo anagrama poético acróstico sobre as letras que constituem o nome da Rainha - Maria Sofia lsabel - que,em anagrama, dá là LI Sabia Fermosa.

Sendo o nome da Rainha constituído por 16 letras, na Tábua de Comprovação verifica-se que, somado o número de vezes que no nome da rainha, como no seu anagrama, e ao longo do poema, aparecem as letras que o constituem, obtém-se o número 16, com o que se comprova a sua exactidão, independentemente do seu valor simbólico.

II Colóquio Internacional Discursos e Práticas Alquímicas (1999)

IN: Discursos e Práticas Alquímicas. Volume II (2002) - Org. de José Manuel Anes, Maria Estela Guedes & Nuno Marques Peiriço. Hugin Editores, Lisboa, 330 pp. hugin@esoterica.pt

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