Referimos já quanto o ensino universitário então reinante desiludiu o jovem estudante J.B.van-Helmont. Para além de muitas das tradições académicas vigentes que considerava totalmente desprovidas de sentido, a principal causa da sua desilusão deve-se ao facto dos curriculos universitários serem totalmente dominados pelo Filosofia Natural dos Antigos, com muito pouca abertura às doutrinas dos Modernos.
Paracelsiano convicto, J.B.van-Helmont professava sem quaisquer restricções os princípios de Hipócrates, tecendo duras críticas e pondo sérias reservas a muitos dos princípios da doutrina de Aristóteles e Galeno. Criticando duramente o uso das matemáticas a que um e outro haviam recorrido no estudo da natureza, em geral, e do ser humano, em particular, criticou também, e sobretudo, as implicações teológicas decorrentes da filosofia aristotélica sobre o movimento que considerava verdadeiramente ignóveis, no domínio da Física[19]. A afirmação aristotélica da natureza como princípio, ou começo do movimento e do repouso dos Corpos, que neles existe como parte da sua essência e não apenas como simples acidente, levara os Escolásticos a admitir que em qualquer movimento local estaria necessariamente subjacente um primeiro motor imóvel. E sendo a vida movimento, na definição do próprio Aristóteles, toda a medicina e filosofia da natureza dos organismos vivos não poderiam prescindir desse primeiro motor imóvel. Identificado este, pelos Escolásticos, com o Criador, J. B. van-Helmont considerou intolerável e absurdo admitir que sendo Deus inteiramente livre, quer nos seus movimentos, quer no seu repouso, pudesse de algum modo ser considerado como primeiro motor que tudo movendo era de si imóvel[20].
Crente que de facto, todo o movimento e a vida resultam do querer divino, na tentativa de se livrar da assim considerada absurda implicação teológica da filosofia aristotélica sobre o movimento, J.B. Van Helmont foi levado a admitir a existência de um poder motriz universal criado pelo próprio Deus, mas dele inteiramente diferente, sediado nas estrelas e no homem, que actua sobre tudo quanto efectivamente se move. A existência deste poder motriz universal diferente do próprio Deus ainda que por ele criado directamente, era para J. B. Van Helmont a tentativa de libertar o Criador das algemas em que a filosofia aristoteliana o acorrentava ao exigir que o primeiro Motor fosse de si-mesmo perpetuamente imóvel[21].
Para esse poder motriz universal cunhou J. B. Van Helmont o nome blas[22]. Nas estrelas residiria o blas meteórico, directamente responsável através do seu próprio movimento pela chuva, a neve, o granizo, os ventos e as marés, e também da acção do calor e do frio, da humidade e da secura, e ainda, do estado acinzentado ou azul-cristalino dos céus conforme ao estado do tempo[23]. No homem residiria um outro blas, o blas humano, independente do blas existente nas estrelas, responsável pelos movimentos que ocorrem nos seus diferentes órgãos. E também os diferentes seres vivos teriam o seu blas próprio, que o Criador teria implantado nas suas sementes[24]. Da independência do blas humano relativamente ao blas meteórico decorreria que as estrelas não poderiam ser causa directa de qualquer dos movimentos que ocorrem no corpo humano, mas apenas indirectamente, influenciando-os através dos estados atmosféricos[25]. Essa mesma independência foi para J. B. Van Helmont o argumento conclusivo para rejeitar a ideia reinante e particularmente típica da filosofia de Paracelso da analogia microcosmo-macroscosmo, o homem um microcosmo réplica do macrocosmo constituido pelos corpos celestes[26]. Reconhecia, todavia, dada a acção indirecta do blas meteórico sobre o blas humano e o blas dos seres vivos em geral, que para bem diagnosticar sobre a doença de seus pacientes, o bom médico não poderia deixar de analisar a acção de todos eles.
3. O envólucro do Ar, fácil de fazer e desfazer ( o magnal )
Nos diversos estudos que fez sobre gases a que já nos referimos, J. B. van- Helmont notou a variação do volume do ar quando uma vela arde num espaço fechado. Colcando uma vela a flutuar sobre água e a arder fechada dentro de um balão de vidro verifica-se que à medida que ela arde, a água sobe no balão, significando que há uma diminuição no volume de ar que lá existia. A sua observação não era inédita. Muitos outros antes dele, desde a Antiguidade Clássica, a haviam notado e tentado explicar. Em particular, não muitos anos antes, R. Fludd (1574-1637) havia dedicado especial atenção ao fenómeno. A explicação do fenómeno estava, todavia, longe de merecer o consenso dos estudiosos. Era o comportamento dos elementos Água, Ar e Fogo que estava em causa, no possível jogo em que se envolvem quando em contacto mútuo, decorrente da sua própria natureza.
Para os discípulos de Aristóteles, o Fogo que consumia a vela daria origem a um vácuo a que a natureza tem horror e que, por isso mesmo o faria ocupar com o Ar presente que nele se perderia e com a àgua que subiria para ocupar o seu lugar.
Uma vez mais, pouco admirador de Aristóteles, J. B. Van Helmont rejeitou por completo este tipo de explicação[27]. E avançou com a sua própria explicação baseada na sua concepção dos Elementos e Princípios de todas as coisas. Para melhor compreendermos essa explicação, impõe-se fazer aqui uma breve referência aos pontos fundamentais dessa concepção.
Apoiando-se muito mais nas Sagradas Escrituras do que nas doutrinas dos Filósofos Antigos, J.B. Van Helmont foi buscar ao relato bíblico do Génesis o fundamento da sua afirmação do carácter primordial e hierarquia dos quatro Elementos, Terra, Água, Ar e Fogo. Porque nesse relato se diz que no princípio as “àguas estavam contidas nos céus e não na terra”, J. B. Van Helmont, identificando os céus com o próprio Ar, considerou que a Àgua e o Ar são os dois elementos primogénitos que estão na origem da constituição de todos os corpos[28]. O Fogo não deve ser considerado como tal pois não é referido nesse relato bíblico que descreve a ordem por que ocorreu a criação[29]. Com base no mesmo relato, a Terra deve ser tida como elemento constitutivo dos corpos, mas um elemento que não é verdadeiramente primordial pois foi criado a partir da Àgua. Porque dos dois elementos primogénitos, a Água e o Ar, foi da Água que a Terra foi criada, na hierarquia dos três elementos, Água, Ar e Terra, é ao elemento Água que cabe a primazia; ele é o mais simples, o mais firme e o mais indivisível, o mais puro e constante de todos.
É por demais célebre a experiência com que J. B. Van Helmont quis demonstrar essa primazia do elemento Água: tomou um pequeno rebento de salgueiro que pesou rigorosamente (5 libras = 2, 268 Kg) e plantou-o num vaso que continha duzentas libras (=90,718 Kg) de terra, pesada também com todo o cuidado e rigor. Regou o rebento regularmente durante cinco anos, com água pura, ao fim dos quais o voltou a pesar devidamente limpo de toda a terra que a ele aderia, tendo verificado que pesava agora 164 libras, isto é, 74,389 Kg. Pesada a terra do vaso, verificou que esta diminuira apenas cerca de duas onças (=56,7 g). Destes resultados concluiu que o aumento total do peso do arbusto se devia essencialmente à água com que fora regado, da qual se teriam formado todos os demais elementos necessários ao crescimento do pequeno salgueiro[30].
Num processo inverso ao deduzido desta experiência de que concluiu a transformação da Àgua na Terra que entra na composição do arbusto estudado, também a Terra que entra na composição das pedras, dos metais, da areia, da argila ou da matéria orgânica animal e vegetal poderia sempre ser transformada em Água insípida de peso igual ao sal usado no processo transformativo[31].
A rejeição do Fogo como elemento primordial na constituição de todos os corpos, confinando a três o número dos elementos a partir dos quais todas as coisas são feitas, insere-se, por uma lado, na tradição paracelsiana dos três princípios de que todas as coisas seriam compostas, o enxofre, o mercúrio e o sal e, por outro lado, na doutrina alquímica da “Água, o Óleo e o Sal” de Basílo Valentim, como os componentes resultantes da destilação dos corpos, observando que na destilação da maioria das substâncias vegetais, sob a acção do fogo aplicado, se não consegue extrair nem enxofre nem mercúrio, mas sim, em proporções variáveis, óleo e cinzas, um e outras constituidas, em última análise, de Água elementar.
Água, Ar e Terra seriam pois, para J. B. van-Helmont os três elementos ou princípios químicos universais e primeiros de todas as coisas, a ter realmente em conta na explicação dos fenómenos que nelas ocorrem[32].
Porque na acima referenciada experiência com uma vela a arder num vaso fechado imerso em água não parecia haver qualquer interferência do elemento Terra e posto de lado o princípio dos discípulos de Aristóteles de que a Natureza tem horror ao vácuo, pareceu a J. B. Van Helmont que a explicação do que se observava se devia buscar na acção do Fogo sobre os elementos Água e Ar á medida que ia consumindo a vela. À subida da água no vaso fechado em que a vela ardia corresponderia uma contracção do Ar no seio do qual a combustão se dava. E sendo o Ar um elemento primordial não composto de quaisquer outros elementos, essa contracção só era possível se no seu interior existissem espaços vazios, buracos ou poros que iriam sendo diminuidos ou mesmo totalmente aniquilados por acção do Fogo que queimava a vela. Se estes não existissem, o calor desenvolvido pela vela a arder, deveria levar a um aumento do espaço ocupado pelo Ar e não a uma diminuição como a decorrente da subida da água; a diminuição desse espaço só seria possível por diminuição do espaço interior do próprio Ar. A diminuição ou aniquilação dos poros do Ar diminuiria o seu espaço interior, causa da diminuição do espaço total ocupado pelo mesmo elemento: o calor alarga o espaço em que o ar se encontra e os fumos resultantes do arder da vela vão-se alojar nos poros do mesmo ar, reduzindo e aniquilando muitos deles, não permitindo que seja o Ar a ir ocupar o espaço alargado, deixando que seja a água a fazê-lo. No caso dos fumos produzidos durante a arder da vela aniquilarem todos os poros do Ar presente, deixará de haver espaço para os acomodar e os mesmos não tendo onde se anichar, sufocarão e extinguirão o fogo e a vela apagar-se-á[33].
Foi admitindo a porosidade do elemento Ar que J.B.van-Helmont afirmou a existência do magnal. Em condições normais, as porosidades do ar mais não seriam que vazios de matéria que conteriam um ser cuja natureza seria algo entre a matéria e o espírito. Foi a esse ser que J.B.van-Helmont chamou magnal, o envólucro ou bainha do ar[34]. É através do magnal que o blas existente nas estrelas actua no homem e nos demais coisas, numa acção distinta e independente da acção do próprio blas que no homem e nas demais coisas existe. Quando aquecido ou arrefecido, o magnal do Ar leva a um aumento ou a uma diminuição do vácuo que no Ar existe, com poros mais alrgados ou mais apertados, respectivamente. Daí o Ar se poder apresentar em diferentes graus de rarefacção[35].
Não foi fácil para J. B. Van Helmont conciliar a existência do magnal no Ar com a natureza simples e elementar do mesmo Ar tido como princípio constitutivo dos corpos. Por mais que afirmado como um vazio de matéria, fácil de poder ser aumentado quase indefinidamente, como também fácil de ser reduzido a quase nada, as dificuldades de conciliação eram óbvias. O Padre M. Mersenne ( 1588-1648) com quem manteve vasta correspondência, depois de por ele ter sido contactado, em 1630, por causa de um caso de herpes mordax, fez-lhe notar essas dificuldades, até ao ponto de o interrogar sobre se a coexistência do magnal com o Ar num só todo seria de algum modo análoga à existência da alma e do corpo no ser humano.
As dificuldades referidas por M. Mersenne relativas à natureza do magnal decorriam do tipo de explicação que R. Fludd avançara para as apontadas observações duma vela a arder, num balão fechado, pairando sobre uma camada de água. De facto, na sua explicação, R. Fludd afirmara que o ar continha em si um sopro divino que seria consumido como alimento do fogo em que a vela ardia, deixando lugar a um vácuo que seria ocupado pela água[36]. Respondendo às dificuldades levantadas, J. B. van-Helmont re-afirmou as suas considerações sobre o magnal, em longa carta, datada de 21 de Fevereiro de 1631, tentando deixar bem claro o que antes sobre ele afirmara[37].
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