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ITALIANIDADE OU VENECIDADE? A CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE COLETIVA ENTRE ÍTALO-RIO-GRANDESES Paulo César Possamai |
Resumo.. A construção da identidade colectiva entre ítalo-rio-grandeses.. Notas |
A construção da identidade colectiva entre ítalo-rio-grandeses |
A data simbólica do movimento pela unificação da Itália é o 20 de setembro de 1870, quando os italianos tomaram a cidade de Roma, até então sede dos Estados Pontifícios. O papa Pio IX não concordou em perder o seu poder temporal; refugiando-se no Vaticano, considerou-se desde então como um prisioneiro de guerra. A sua recusa em reconhecer o Estado unificado italiano, ao proibir aos fiéis a participação nas eleições do reino, criou uma profunda barreira entre os católicos e o novo governo.1 Da luta entre o liberalismo, ideologia que dominava o reino unificado, e a Igreja Católica não estavam isentos os camponeses que aderiram às levas da emigração em massa, muitas das quais partiram sob a liderança de sacerdotes católicos. Enquanto o clero idealizava o Novo Mundo como o espaço onde era possível reconstruir uma sociedade camponesa e clerical que estava em declínio na Europa, os emigrantes sonhavam encontrar na América o país da fartura, onde todos se converteriam em proprietários.2 Devido ao papel de liderança assumido por alguns sacerdotes católicos no movimento emigratório, não é de se estranhar que o prestígio do clero, que já era grande no norte da Itália, tornou-se ainda maior nas colônias agrícolas do Rio Grande do Sul. Além do seu papel tradicional de líder intelectual dos camponeses, o clero também passou a desenvolver um importante papel assistencial durante os primeiros tempos da colonização. Contudo, o seu prestígio social não deve fazer esquecer que também dominava um poder sobrenatural, pois, segundo Merlotti, os colonos acreditavam que através das bênçãos o padre podia garantir a salvação da alma e a proteção do corpo. “Logo, a função do padre torna-se carregada de valores exteriores à sua própria pessoa, pois deve proteger a ordem tradicional, beneficiando os bons e castigando aqueles que tentaram romper com os elos pré-estabelecidos pela ordem divina”.3 Mas, se a Igreja dominava absoluta, sem a presença de rivais que ousassem contestar seu papel de liderança entre a população rural da região de colonização italiana, não se pode dizer o mesmo com relação aos núcleos urbanos das colônias, onde a presença de representantes de outras ideologias e religiões impediu o monopólio do pensamento católico. O principal grupo que fazia oposição à Igreja era formado pelos maçons que, apesar de bastante reduzido, e dividido em franco-maçons e maçons carbonários, foi o que melhor se adaptou à política regional e estadual, freqüentando as mesmas lojas maçônicas dos fazendeiros dos Campos de Cima da Serra.4 Embora a esmagadora maioria dos imigrantes fosse constituída de camponeses que, majoritariamente, rejeitavam o anticlericalismo difundido pela maçonaria e pelas associações italianas, também vieram alguns elementos urbanos que logo se puseram em contato com as autoridades brasileiras que administravam as colônias. Porém, a maior parte dos quadros da maçonaria entre os italianos e descendentes começou a se formar a partir da ascensão econômica e social dos comerciantes, alguns dos quais em breve se transformariam em industriais. Esses elementos buscaram identificação com a elite política do Estado, que seguia o ideário positivista e freqüentava as lojas maçônicas. Durante a República Velha, a maçonaria funcionou como elemento de ligação entre seus membros e os organismos de poder do Estado, assumindo o papel desempenhado pelos coronéis no Império. “Portanto, pertencer à Maçonaria significava a possibilidade de beneficiar-se dos favores do Estado. Ser maçom significava poder servir-se de um canal privilegiado para o atendimento de demandas individuais e coletiva”.5 Porém, pertencer à maçonaria significava romper com Igreja católica. Em sua luta contra a maçonaria, o clero passou a atacar a acumulação de capital feita pelos comerciantes às custas dos colonos o que, por sua vez, reforçava sua imagem de defensor dos agricultores. O padre escalabriniano Giovani Costanzo denunciou a atitude dos comerciantes de Nova Bassano, em 1910, que, ao fixar a seu favor os preços das mercadorias compradas e vendidas aos colonos, agiam como vampiros.6 No seio dessa luta, a situação dos agricultores era muito delicada, pois podiam sofrer represálias de algum grupo caso se declarassem favoráveis a uma das partes. Procuraram então manter uma posição neutra nos conflitos entre o clero e os comerciantes que, como foi dito, eram em sua maioria maçons. Temiam tanto as maldições dos padres como a perda do crédito e da garantia da compra do excedente agrícola pelos comerciantes.7 Além das lojas maçônicas, logo foram instituídas sociedades italianas. Geralmente o mesmo elemento que freqüentava as lojas maçônicas era membro de uma sociedade italiana, mas isso não era uma regra geral. A maioria dessas sociedades se constituiu junto aos núcleos urbanos da colônia e geralmente levavam o nome de algum herói italiano ou de algum membro da Casa Real da Itália. Além da assistência aos sócios, elas tinham como objetivo manter vivo entre os imigrantes e seus descendentes o sentimento de italianidade. Em busca desse objetivo promoviam a comemoração das datas nacionais italianas e o culto à memória dos heróis da península. E, como a data da conquista de Roma coincide com o dia em que se comemora a Revolução Farroupilha, sob a influência do castilhismo o 20 de setembro tornou-se uma festa de integração entre italianos e gaúchos, com o culto conjunto dos heróis de ambos os povos pelos membros das sociedades italianas.8 Com poucas exceções as sociedades italianas eram bastante fracas, pois seus membros geralmente descarregavam na vida associativa suas ambições, frustrações e querelas pessoais, o que levara à pulverização dessas instituições. No Rio Grande do Sul, as associações italianas alcançaram cifra máxima de 64 no início do século XX.9 Durante o governo Crispi (1887-1896) os consulados italianos foram incentivados a auxiliar na criação e desenvolvimento das sociedades italianas, com o objetivo de manter vivo entre os imigrantes o sentimento de italianidade. Nesse momento, a imigração havia deixado de ser um problema para converter-se em um instrumento que impulsionava o desenvolvimento econômico da Itália através das remessas de capital e do desenvolvimento da navegação. Dentro dessa perspectiva, interessava manter os vínculos entre os imigrantes, que passaram a ser considerados “italianos no exterior”, com vistas a manter as ligações comerciais entre a Itália e as suas “colônias” de imigrantes.10 Se as sociedades italianas conseguiram agrupar um certo número de membros nos núcleos urbanos das colônias, as tentativas de captar os agricultores para o capitalismo italiano através do culto da italianidade não foram bem sucedidas, uma vez que os cônsules raramente intercediam em favor dos colonos. Também não se difundia o uso da língua italiana, pois dentre os imigrantes poucos eram os que não se expressavam no dialeto da região de origem. Mais de 50% dos imigrantes eram analfabetos e sem subsídios as escolas não prosperavam, uma vez que deviam cobrar pelo ensino ministrado.11 Com a implantação da República aumentou a preocupação com a assimilação dos estrangeiros. A primeira autoridade italiana a visitar as colônias teve o desprazer de ouvir o Dr. Parobé, secretário de obras públicas do Rio Grande do Sul, declarar-lhe que o Estado se interessava pela continuação da corrente imigratória, salientando que: “se este imigrante for italiano, tanto mais fácil se tornará nosso intento, pela assimilação natural que deriva da raça e da língua”.12 A princípio duramente combatidas pelos ultramontanos, 13 representados principalmente pelos capuchinhos na região serrana e pelos palotinos na região da Quarta Colônia, as associações italianas deixaram de ser vistas como inimigas da Igreja com a ascensão do fascismo, quando as relações entre o Estado italiano e a Igreja se transformaram totalmente. De fato, o principal agente divulgador da “Jovem Itália” na região colonial foi a Igreja Católica, uma vez que, através dos acordos de Latrão, assinados em 1929, Mussolini resolveu a espinhosa “Questão Romana”, que, desde 1870, dificultava as relações entre a Igreja e o Estado italiano. Com a assinatura dos tratados de Latrão, que reconheciam o Estado do Vaticano, indenizavam a Igreja pela anexação dos Territórios Pontifícios à Itália e declaravam o catolicismo a religião oficial do Estado italiano,14 o prestígio obtido por Mussolini não se restringiu à Itália, mas alcançou todo o mundo católico, difundindo-se na região colonial italiana através da pregação do clero e da imprensa católica. O jornal dos capuchinhos começou a fazer uma defesa cada vez mais clara do fascismo na década de 1930. Na comemoração dos dez anos de implantação do regime fascista, em 2 de novembro de 1932, o Staffetta Riograndense, descreveu Mussolini como “um herói que luta em defesa de uma nova era de paz, traz uma espada em sua mão para combater os inimigos (maçonaria e socialismo) e desarmá-los”.15 Dentro dessa perspectiva, o Duce era visto pelo clero como o herói que havia salvado a Itália da anarquia e do comunismo. Contudo, apesar do apoio da Igreja, houve pouca adesão dos colonos ao fascismo. A simpatia pelo novo regime, que representava os principais valores cultuados pelos colonos (trabalho, disciplina, ordem, família), não foi suficiente para engaja-los diretamente na luta. Bertonha acredita que a deficiência da propaganda fascista entre a população rural e o caráter de inércia da mesma tenham restringido a adesão formal ao fascismo a alguns membros da burguesia e da classe média das cidades da região colonial, especialmente de Caxias do Sul.16 Em 1928, criou-se uma comissão pró-criação do bispado de Caxias do Sul, a partir de um movimento iniciado pelo clero regional. Essa comissão era liderada pelo prefeito, Celeste Gobatto, que também era um importante líder fascista em sua cidade. Apesar de não contar com o apoio do arcebispo, D. João Becker, em 1935 a criação da nova diocese foi confirmada pela Santa Sé: “Na luta pela diocese, a italianidade apareceu em diversos modos: interesse consular, luta por um mapa que tivesse os contornos da colônia italiana, tática de apoiar a criação de Vacaria para evitar ser diocese de campanha, desejo de municípios coloniais por integrar o mapa”.17 Se a Revolução de 1930 sofreu duras críticas por parte do clero da região colonial italiana, o mesmo não aconteceu quando da implantação do Estado Novo, que recebeu a fervorosa adesão de uma considerável parcela de clero regional. Porém, na medida em que o Brasil se distanciava do Eixo e passava para o campo dos aliados, a Igreja ia adequando-se à nova situação, através do apoio a Getúlio Vargas e do abandono da pregação pró-fascista.18 A declaração de guerra à Itália não significou um trauma muito grande no Brasil, pois foram poucas as restrições adotadas, como a proibição do uso da língua italiana e o bloqueio de parte dos depósitos bancários dos cidadãos italianos. Talvez o pior tenha sido ter de assistir impotentes à queda do mito de superioridade difundido pelo fascismo. Trento salienta que os italianos tiveram melhor tratamento pelas autoridades brasileiras que os outros súditos do Eixo.19 Contudo, a repressão existiu, mas se fez de maneira diferenciada, de acordo com a conjunção local. Enquanto em algumas regiões, como em Guaporé, 20 não foi muito violenta, na região da Quarta Colônia, a fim de apreender material nazi-fascista a polícia invadiu casas e, em Vale Vêneto e em Dona Francisca, foram registradas mortes. As sociedades italianas tiveram de adotar nomes em português que não fizessem referências à Itália, mas mesmo assim não deixaram de sofrer atentados, como a derrubada do busto do rei Emanuel III, que se localizava na praça de São Marcos.21 Alguns anos após o fim da guerra e do Estado Novo, a comunidade ítalo-rio-grandense voltou a manifestar-se culturalmente através das comemorações do 75º aniversário da imigração italiana, em 1950. Podemos acompanhar as transformações ocorridas no sentimento de identidade dos ítalo-rio-grandenses na análise feita por Silvino Santin de três documentos comemorativos à imigração italiana no Rio Grande do Sul. O documento comemorativo do 50º aniversário da imigração (1925) foi escrito em italiano e apresentava com destaque a figura de Mussolini, procurando, a todo o momento, destacar a atuação das sociedades italianas na preservação da italianidade. No 75º aniversário (1950) o documento foi redigido em português e nota-se que ele já não exalta a preservação da italianidade, mas sim o trabalho do imigrante na agricultura, no comércio e na indústria e apresenta o Estado brasileiro à frente das comemorações. Preocupa-se também em evitar a discriminação contra os italianos e descendentes e concentra sua atenção na Festa da Uva, em Caxias do Sul, festa maior da comunidade ítalo-rio-grandense. Já o documento comemorativo do centenário da imigração (1975) é uma publicação bilíngüe que buscou, antes de tudo, valorizar a integração entre os imigrantes e seus descendentes à nova pátria.22 Pode-se afirmar que o renascimento da afirmação de pertença étnica ressurgiu em 1975, quando, para celebrar o centenário da imigração italiana no Rio Grande do Sul surgiram várias publicações, em sua maioria sem rigor científico, que buscavam regatar o passado histórico dos imigrantes,23 mas só tomou força na década de 1980, quando o fim do chamado “milagre brasileiro” coincidiu com a ascensão econômica da Itália.24 A dificuldades econômicas vividas pelo Brasil ajudaram na aplicação do que Glazer chamou “lei de Hansen”, que estabelece que a identidade étnica tende a ser rejeitada na segunda geração mas revitalizada na terceira.25 O cenário internacional também ajudou na retomada do interesse pela etnicidade. Nos últimos anos tem-se observado, como fenômeno mundial, a revalorização da cultura regional que, em alguns casos, acabou por fazer renascer velhos nacionalismos, como aconteceu no leste europeu após a queda dos regimes comunistas. Na Itália, as disparidades econômicas e culturais entre o norte e o sul do país radicalizaram-se com a criação da Lega Nord, que propôs a secessão e a criação de um novo país no norte da península, a Padânia.26 Com a vitória nas últimas eleições italianas, a Lega Nord assumiu o poder não só em várias províncias e regiões como também se tornou parte integrante do governo central italiano. Se, com a ascensão ao poder, a Lega Nord deteve sua política secessionista, limitando-se a tentar implantar um sistema federalista no país, seus representantes nos governos provinciais e regionais deram início a uma política de valorização da cultura local, buscando, através do incentivo à manutenção da cultura tradicional e do dialeto, construir uma identidade regional.27 Com o aumento da autonomia política, resultado direto da implantação do federalismo na Itália, o governo vêneto passou demonstrar um crescente interesse pelas comunidades de imigrantes e descendentes conhecidos desde então como “vênetos no mundo”. Tal política parece ter por finalidade buscar legitimar uma identidade vêneta, que teria possibilitado a preservação dos costumes do Vêneto no sul do Brasil mesmo após mais de um século de imigração. Reflexos dessa política podem ser vistos no Rio Grande do Sul onde, ao lado do renascimento do sentimento de italianidade, surgiu um movimento cultural que luta pela conservação do dialeto e da cultura herdada dos antepassados que, ao mesmo tempo em que se proclama defensor de uma cultura de origem italiana formada no sul do Brasil e, portanto ítalo-brasileira, busca a identificação antes de tudo com a região do Vêneto. A aproximação dos ítalo-rio-grandenses aos vênetos nada tem de estranho, uma vez que a maioria dos imigrantes italianos que se estabeleceram na região colonial do nosso Estado, a partir de 1875, veio dessa região italiana.28 Enquanto a perspectiva da obtenção de um passaporte italiano, facilitado pela legislação da Itália, que se baseia no princípio do jus sanguinis, representa os anseios de uma população jovem e urbanizada, que busca no intercâmbio cultural com a Itália ou mesmo na emigração uma maneira de inserir-se numa sociedade cada vez mais globalizada, outro grupo busca na retomada dos valores dos imigrantes, a preservação da comunidade camponesa e católica, ameaçada pela crescente urbanização e pela proliferação de seitas evangélicas. Dentro desses objetivos, a língua passa a ser o principal meio de coesão dos grupos. Enquanto o primeiro busca no italiano oficial a melhor maneira de inserir-se na sociedade moderna italiana, o segundo busca a preservação da cultura dos imigrantes na valorização de uma koiné dialetal, sistematizada pelos capuchinhos em obras como Vita e Stória de Nanetto Pipetta, Togno Brusafrati, Storia de Nino, Stória de Pêder, e outras, que começaram a surgir nos anos posteriores a 1920.29 Segundo Pozenato essa literatura em dialeto se relaciona com a cultura clerical. Publicada no principal jornal que circulava entre os imigrantes e seus descendentes, o periódico dos capuchinhos, Staffetta Riograndense, ajudou a criar e padronizar uma linguagem em comum. Nesse caso a cultura popular propriamente dita era a cultura clerical. Embora houvessem casos isolados de letrados leigos entre os dois planos culturais, o seu número era insuficiente para caracterizar uma classe letrada leiga.30 O que se busca então é resgatar o clericalismo que marcou a experiência da maioria dos imigrantes italianos que se estabeleceram na região colonial do Rio Grande do Sul. Hobsbawm observou que as línguas de grupos minoritários podem ser utilizadas para “a defesa dos velhos costumes e tradições contra as subversões da modernidade: daí o apoio que movimentos como o dos bretões, flamengos e bascos receberam dos católicos romanos”.31 Circunstância que parece ter passado desapercebida aos lingüistas, para os quais o dialeto chamado talian ou “vêneto brasileiro”, em seu estágio atual, deve ser visto antes uma busca de reafirmação de pertença étnica que como a sistematização de uma nova língua, como propõem seus defensores.32 De fato, não só a preservação da etnicidade mas também a do catolicismo parecem ser as principais preocupações dos defensores do talian. Júlio Posenato vê o imigrante através do mito de que ele venceu sozinho todas as adversidades, sem contar com o apoio das autoridades italianas e brasileiras.33 Para ele, os subsídios dados pelos consulados italianos aos cursos de língua italiana seriam uma forma de colonização cultural da comunidade ítalo-rio-grandense. Por sua vez, defende-se de acusações de racismo na divisa adotada pela associação Massolin di Fiori, da qual é membro: Mi son talian grassie a Dio, vista por Posenato como uma “afirmação altiva de cidadania”.34 Darcy Loss Luzzatto, criador do mote, afirma que com ele quer dizer: “Eu sou brasileiro, descendente de imigrantes oriundos do Norte da Itália, graças a Deus”.35 Honório Tonial, ao criticar a maneira estereotipada como as telenovelas do centro do Brasil tratam a história da imigração italiana afirma que, em seu livro, buscará fazer diversas referências à maneira de vida de seus antepassados, sem a preocupação de fazer sensacionalismo.36 Tonial busca, portanto, na preservação do dialeto a preservação dos valores camponeses dos imigrantes. Já Luzzatto procura valorizar o dialeto ao desvinculá-lo do mundo camponês, ligando-o à prestigiosa história da República de Veneza. Nessa tentativa, insiste no regionalismo, negando que os imigrantes se sentissem italianos.37 Na verdade, o termo talian não se refere a nenhum dialeto italiano específico, mas refere-se sim ao gentílico “italiano”, já que os descendentes mais velhos não conseguem fazer uma distinção entre os termos “taliano”, “talian” e “italiano”.38 Para Franzina, apesar da luta da Igreja contra o Estado Italiano, os imigrantes da península itálica se viam como italianos na medida em que eram diferenciados dos outros grupos étnicos presentes no Rio Grande do Sul. Os imigrantes vindos depois da Segunda Guerra Mundial seriam conhecidos entre os imigrantes mais antigos como “italianos da Itália”.39 Na perspectiva de criar uma língua que sirva como elemento de coesão para afirmar a identidade étnica, existem várias tentativas de normatização do talian. Luzzato defende que se devem extrair os “brasileirismos” daquilo que, pretende, é a mais nova língua neolatina. Rovílio Costa insiste em que o talian seja ensinado às crianças como uma condição para a sua sobrevivência, mas reconhece que muitos textos escritos em dialeto não passam de português italianizado.40 O jornal dos capuchinhos, que atualmente se chama Correio Riograndense, publica em cada edição uma lição de talian do curso organizado por Luzzatto. Nas lições são freqüentes as referências ao Vêneto, particularmente à Veneza, numa tentativa de vincular o talian a uma cidade que por séculos foi um importante centro comercial e cultural europeu. O esforço por criar uma língua vêneta une os “taliani” aos “venetistas”. Na ânsia de criar uma língua padrão através da unificação dos vários dialetos vênetos, Gianfranco Cavallin propõem que a ortografia dela se baseie no texto da missa vertido para o talian!41 Que o livro de Cavallin tenha sido publicado pela editora EST, que é dirigida pelo frei Rovílio Costa, principal divulgador da produção escrita em dialeto, sugere que há cooperação entre “venetistas” e “taliani” para a construção de uma identidade étnica comum, embora os defensores da preservação e difusão do talian neguem qualquer tipo ligação com uma política de italianidade ou venetismo.42 Contudo, os fatos parecem indicar que tal ligação realmente existe que é muito forte. Em novembro de 1998, quando se debatiam os estatutos da Associação de Programas de Rádio em Talian (ASSAPRORATA), uma conexão telefônica colocou em contato os representantes dessa associação com os locutores da Rádio Padania, porta-voz de um dos movimentos separatistas italianos mais radicais, a Liga Veneta. O debate entre os dois grupos, transmitido ao vivo, constituiu o momento de maior tensão emotiva do encontro, segundo Florence Carboni e Mário Maestri.43 Neste debate pela construção de uma identidade ítalo-rio-grandense notamos uma evolução contínua onde dois grupos lutam para fazer valer a sua imagem do que deve ser o descendente de italiano no Rio Grande do Sul. Do início da imigração até a ascensão do fascismo, a disputa foi travada entre o clero ultramontano, que não reconhecia a anexação de Roma ao reino da Itália e lutava contra o ideário liberal e anticlerical dominante entre a elite italiana, mas que defendia a preservação da língua (ou do dialeto) e dos valores do campesinato italiano entre os imigrantes e seus descendentes como um importante fator de preservação da catolicidade entre os mesmos. Já os representantes do nacionalismo italiano, através das associações italianas, buscavam preservar entre os imigrantes e seus descendentes o sentimento de italianidade que era alimentado pelos governos da Itália, especialmente durante o período Crispi. A reconciliação entre a Igreja e o Estado, patrocinada por Mussolini, levou a uma revalorização da italianidade, que passou a ser também defendida pelo clero católico. Porém a política de nacionalização de Vargas e os governos militares sufocaram qualquer tentativa de renascimento de afirmação étnica que fosse de encontro à construção da imagem oficial do que deveria ser um bom brasileiro. A crise econômica dos últimos anos e o renascimento dos nacionalismos que se seguiu ao fim da utopia socialista após a desintegração da União Soviética, favoreceram a retomada da consciência étnica entre os ítalo-rio-grandenses. Contudo, como no início da colonização, dois grupos lutam pela construção da identidade coletiva: um, que se orienta pela etnicidade, vê na ligação com a moderna sociedade italiana um fator de promoção e inserção na sociedade contemporânea, enquanto o outro busca resgatar ou mesmo reconstruir os valores dos imigrantes, numa releitura romântica da sociedade camponesa e clerical do passado, buscando respaldo na etnicidade e na catolicidade, que seriam os elementos definidores da identidade coletiva dos ítalo-rio-grandenses. |