MARIA ESTELA GUEDES
A poesia na óptica da Óptica
Carlos de Oliveira, o microscopista (1)

"As cores são a mais universal e interessante parte de toda a Física;
elas ornam todo o Universo, e a elas devemos todos os nossos naturais conhecimentos.
Desde a mais remota estrela fixa até à mais profunda escavação feita no nosso globo,
não se vê corpo algum, que não seja colorido."
Diogo de Carvalho Sampaio, Dissertação sobre as cores primitivas (2)

Questões de método

Era necessário estabelecer um método para analisar a poesia do ponto de vista da vista, pois é do olhar que também falamos, quando nos propomos o título "A poesia na óptica da Óptica". Mesmo um método muito simples, com apenas três pontos: Luz, Visão e Cor. Cada um dos três pontos logo abririria o leque de imensas possiblilidades de leitura.

Luz em primeiro lugar, porque as cores dependem dela, ou antes: a nossa visão depende da luz para perceber as cores. E que faríamos aos poetas cegos neste ponto? Que faríamos ao mais célebre de todos os cegos, Homero? Mas Homero não pode ter sido cego de nascença, quando as suas Ilíada e Odisseia estão tão cheias da luz do Mediterrâneo, essa luz que lhe permite identificar os heróis e os deuses por atributos visuais: Aquiles, o dos pés rápidos. Ou Aurora, a deusa dos róseos dedos.

Luz em primeiríssimo lugar porque essa é a primeira de todas as criações, aquela pela qual Deus principiou, ou não teria visto bem o que criava: "Faça-se a luz , e a luz fez-se. Deus viu que a luz era boa e separou a luz das trevas. Deus chamou dia à luz e às trevas, noite. Assim surgiu a tarde, e, em seguida, a manhã: foi o primeiro dia." (Gén: 1: 4-5).

A luz em primeiro lugar porque, sem ela, não existe cor. E porque, com ela, existe a Óptica, e com a Óptica, as propriedades e natureza da luz e da cor. Se a refracção é um efeito que só raramente aparece na poesia, já a opacidade, a transparência, a pureza, a impureza, e sobretudo a reflexão, com o correlato espelho, fazem parte do poema. São mesmo elementos tão indissociáveis dele como da água as flores de Narciso, e deste a indissociável ninfa Eco, com a qual sairíamos do domínio da Óptica para entrarmos no da Acústica. Serão dois campos diferentes, na poesia? Quando o vermelho soa como um clarim, estamos no domínio da cor ou no domínio da música? Se a cor fosse fenómeno de Acústica, o nosso bom método ficaria arrasado. Mas não é isso o que escreve Gomes Leal?

O vermelho deve ser como o som duma trombeta

(Um cego)

Alucina-me a cor! – A rosa é como a Lira,
a Lira pelo tempo há muito engrinaldada,
e é já velha a união, a núpcia sagrada,
entre a cor que nos prende e a nota que suspira.

Se a terra, às vezes, brota a flor, que não inspira,
a teatral camélia, a branca enfastiada,
muitas vezes, no ar, perpassa a nota alada
como a perdida cor dalguma flor que expira...

Há plantas ideais de um cântico divino,
irmãs do oboé, gémeas do violino,
há gemidos no azul, gritos no carmesim...

A magnólia é uma harpa etérea e perfumada,
e o cacto, a larga flor, vermelha, ensanguentada,
– tem notas marciais, soa como um clarim.

Gomes Leal, Claridades do Sul

Sinestesias idênticas achamo-las em Carlos de Oliveira, por exemplo no poema II de "Crepúsculo", quando, a partir de um corpo transparente e reflector de luz, o vidro, evoca o ruído das cores ao partirem-se como cristal. De seguida, o cristal desenvolve as imagens e transfere-as da Acústica para a Óptica, de onde regressam à Acústica, num movimento de vaivém, para aportarem enfim ao primitivo porto de que haviam largado - esse porto é o das letras, das palavras, do poema ferido, visualmente fracturado, em fragmentos, sem princípio nem fim:

II

do vidro; e a água
conseguirá então multiplicá-la:
cristal inúmero flectindo
as cores no ar; partindo-as
gota a gota;
e sempre,
a percussão dum ruído obsessivo,
com motores, atrito de pneus
sobre alcatrão; inverno
fabricando à pressa
o gás, a névoa dos escapes,
numa oficina que anoitece;
até que as letras fracturadas
transponham as janelas,

No método que não estabeleci poderia analisar então a luz como elemento estudado pela Óptica ou como faculdade estudada pela Filosofia - refiro-me à luz do conhecimento; poderia analisar os textos como poemas coloridos ou a preto e branco, como faz Nuno Júdice (3), podia estudar o comportamento do olhar - e olhar de quem? do poeta, das personagens ou do leitor? - e também o comportamento da cor nos poemas, e ver bem a sua natureza, porque há vários tipos de cor, por exemplo, a cor permanente dos corais e a cor efémera do arco-íris. E podia ver se a cor pinta paisagens, estabelecendo uma hibridação entre poesia e pintura, ou se identifica objectos e pessoas, como o faria o vermelho em relação ao Benfica, o branco e o negro em relação à Antropologia, ou o verde e vermelho em relação à bandeira de Portugal.

Na questão do método cumpriria ainda esclarecer que a cor, na poesia, é uma das várias ferramentas do artista, cujo destino é por conseguinte contribuir para alcançar a obra de arte. Tal como o pintor escolhe as tintas, e o jardineiro as flores segundo o seu colorido, também o poeta visa a beleza com os mesmos elementos. Porém as tintas do poeta não são substâncias vermelhas ou azuis, e o poeta pode gostar do lápis-lazúli sem saber qual exactamente a cor do lápis-lazúli, porque os sons da palavra têm um colorido especial ao ouvido: é a própria palavra "lápis-lazúli" que o encandeia e transporta para os domínios do maravilhoso, se bem que nenhuma cor seja mais profundamente bela que o lápis-lazúli - e esta observação merecia um capítulo próprio na questão do método, acerca da individualidade de cada olhar sobre as cores.

O método é indispensável para nos orientarmos no meio das infinitas hipóteses de leitura. Porém o poeta não tem método quando escreve, por isso não obedece aos critérios científicos. É inútil esperar que num poema em que reina a treva nocturna não haja cor, porque a treva pode ser luminosa. É próprio da arte ser subversiva, por isso tenho imensa saudade do método que não estabeleci, porque, para os poetas, e para Carlos de Oliveira, no caso corrente, em primeiro lugar não está a luz, sim o fogo. A sua poesia é ígnea, e não precisamos de ler a "Descida aos Infernos" (4) para deparar com combustões de enxofre e outros incêndios, o fogo ilumina muitos outros versos. Fonte de luz, cor e calor, o fogo, em Carlos de Oliveira, pode servir de exemplo ao que refere Nuno Júdice sobre a poesia escrita nos tempos da ditadura, que ele vê como filmes a preto e branco na televisão. Então o vermelho do fogo assinala emblematicamente a luta comunista. Em Carlos de Oliveira, este uso emblemático do vermelho surge, com efeito. Porém o facto não esgota outros sentidos, mais claros num discurso francamente social que de resto levou a PIDE a proibir a distribuição do seu livro "Alcateia".

(1) Texto-base de uma aula sobre "A cor na poesia contemporânea", no curso livre "A exaltação da cor", da responsabilidade de Alexandra Soveral Dias. Universidade de Évora, 12 de Abril de 2007.

(2) Diogo de Carvalho Sampaio, Dissertação sobre as cores primitivas : com um breve Tratado da composição artificial das cores. Lisboa, Regia Officina Typographica, 1788.

(3) Nuno Júdice, A viagem das palavras, Lisboa, Edições Colibri, 2005.

(4) Todos os textos citações se referem aos dois volumes que recolhem os livros de poemas de Carlos de Oliveira,Trabalho Poético, Lisboa, Sá da Costa, 1976.

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