MARIA ESTELA GUEDES
A poesia na óptica da Óptica
Carlos de Oliveira, o microscopista (1)

"Como é que se chama este azul? - É indigo?"
Dirigir a atenção para a cor faz-se, às vezes, afastando com a mão os contornos da forma; ou não dirigindo o olhar para a configuração da coisa; ou fixando os olhos no objecto tentando lembrar onde é que já se viu esta cor.

Ludwig Wittgenstein, Tratado Lógico-Filosófico, pág. 199 (2)

Psicogeografia colorida

Carlos de Oliveira (1921-1981) é um dos escritores portugueses mais importantes do século XX. Nasceu no Brasil, viveu na região da Gândara (Febre, Cantanhede), estudou em Coimbra e morreu em Lisboa, onde terá convivido com poetas seus contemporâneos como António Ramos Rosa, Herberto Helder, Mário Cesariny de Vasconcelos, entre muitos mais.

Estes dados biográficos acham eco na sua obra, muito vinculada aos aspectos sociais, culturais, às ciências, e neste caso à geografia. Basta atentarmos no título e subtítulo do seu último romance para vermos a importância do lugar no desenho da obra: "Finisterra - Paisagem e povoamento", inspirado na paisagem gandaresa. Outros títulos e textos manifestam a sua ligação a Gaia, de preferência uma Gaia litoral, em que seja forte a luz do sol, para se reflectir nas areias das dunas: "Terra de Harmonia", um livro de poemas publicado em 1950; "Casa na duna", um romance; e "Gândara", uma série oito poemas no livro "Turismo", em que encontramos as negras águas da lagoa habitadas por sapos, e imagens em que a cor aparece como efeito especial, digamos assim, como no poema IV:

"Ao lume da estrumeira
lagos esverdeados.
Passam os meninos a tarde inteira
a olhar os lagos encantados".
(3)

Neste apontamento sobre a bio- ou psicogeografia podemos incluir a "Descida aos infernos", um livro de poesia, em que o lugar se desloca do exterior para o interior, transmutando os factos da realidade percebida pelo olhar em factos sentidos, em emoções. Os habitantes deste Inferno não são as almas dos condenados de Dante nem de Virgílio, sim elementos de uma Natureza alienígena, viscosa, que nos é familiar hoje dos filmes de ficção científica, como no poema 4, que nos apresenta uma paisagem zoomórfica, de olhos verdes. Mais típico do conceito ortodoxo de Inferno é o fogo, que, no poema 6, assume contornos alquímicos, ao mencionar combustões de metais e substâncias coloridas, caso do enxofre e do mercúrio. No entanto, trata-se de exprimir emoções do sujeito lírico e não os acidentes geográficos do Inferno:

"Como unhas de mercúrio fulgente
crescem-me dos olhos e dos dedos
nunca sonhados medos, nunca tanto
fulgor de lágrimas doentes."

Esta tendência para pôr as tintas ao serviço da emoção manifesta-se nos próprios instrumentos de trabalho, como acontece no poema III de "Desenho infantil", em que Carlos de Oliveira fala da "cólera das cores". Não é invulgar os sentimentos terem cor neste poeta.

É necessário entretanto perguntar: são as cores da poesia elementos distintivos de figuras, como a cal identificaria o branco das casas algarvias? Não, as cores são palavras, e nem mesmo num poeta realista, como Carlos de Oliveira em certos casos é, têm funcionamento descritivo, ou apenas descritivo. As cores são elementos da linguagem, há várias linguagens no corpo, uma delas é a da racionalidade, outra a do inconsciente. No seu primeiro livro, "Turismo", Carlos de Oliveira dedica cinco poemas à sua Amazónia natal, pois nasceu em Belém do Pará, mas o que diz não seria aceite como prova de nada num tribunal da ciência, pois só viveu no Brasil até aos dois anos. Aliás, a geografia de Carlos de Oliveira, além de bio- e de psicogeografia, é uma geografia também das idades, como se o corpo fosse um mapa mais ou menos trabalhado. Daí que o seu primeiro poema, intitulado "Infância" (em Turismo), identifique a criança com um lugar sem a profundidade simbolizada pelo azul: "Terra/ sem uma gota/ de céu". Então, quando refere à Amazónia versos com luz e cor, não é o Tratado de Óptica de Isaac Newton que nos pode valer, para compreendermos os versos. Mais facilmente nos guiaria um filósofo, Wittgenstein (4), pois, quando analisa as cores, não as toma no seu nível físico por efeitos de luz nem por pigmentos, ele está, sim, a analisar os conceitos de cor contidos nas palavras - o conceito de azul, o conceito de brancura -, ou seja, ele estuda as cores enquanto elementos que fazem parte da nossa linguagem.

Vejamos para reflexão o poema III de Amazónia, com o seu colorido tropical, fruto da imaginação criadora de um poeta, e não da imaginação criadora de um pintor, ou da experiência técnica de um tintureiro. Recordemos que Carlos de Oliveira não parte da experiência vivida, pois nunca, decerto, esteve no interior da selva amazónica. Ele não pode criar ou recriar o mundo amazónico físico, ele ergue uma evocação da Amazónia partindo da realidade intelectual, aquela em que se situam as narrativas, as imagens, as músicas. Enfim, nestas palavras rememoro as lições de outro filósofo capaz de nos orientar no mundo das ideias, Karl Popper, com a sua teoria da realidade dos três mundos (5). No mundo três, o da linguagem, mesmo um poema que descreva realisticamente um campo de girassóis, situa-se num nível de abstracção maior do que um quadro com o mesmo assunto pintado por Van Gogh.

As cores têm dimensão conceptual, psíquica e simbólica muito rica e complexa, que ultrapassa o nível mais imediato do seu uso possível para descrever em aguarela dado aspecto da realidade. E não me refiro literalmente à pintura, sim a uma aguarela de palavras, como em Cesário Verde:

Naquele "pic-nic" de burguesas,
Houve uma cousa simplesmente bela,
E que, sem ter história nem grandezas,
Em todo o caso dava uma aguarela.

Foi quando tu, descendo do burrico,
Foste colher, sem imposturas tolas,
A um granzoal azul de grão-de-bico
Um ramalhete rubro de papoulas
.

As cores da poesia não se situam no mundo das coisas tangíveis, sim no da arte e da vida espiritual e emotiva. E assim toda a escrita de Carlos de Oliveira podia ser identificada pela cor do fogo, tão emocional e recorrente é na sua obra o elemento ígneo. Aliás o próprio poeta dá da sua poesia uma definição pela cor, se bem que para conceptualizar a profundidade das emoções não use o vermelho, sim o negro. No poema I de "Odes", escreve ele:

"Poesia, convento negro do instinto,
incensa as tuas naves de razão:
e vós, versos meus, monges sem fé,
blasfemai aos claustros do meu coração."

As emoções, as faculdades intelectuais, têm cor, como vimos: se o instinto é negro, já é " tristeza rubra como os cravos" o que encontramos no primeiro poema de "Chôro". Outros exemplos é fácil coligir na obra, que nos revelam essa capacidade dos poetas de criar um mundo paralelo, em que os corpos se transmutam em algo nunca visto e os sentimentos adquirem espessura, forma e cor.

(1) Este texto constitui o eixo de uma aula sobre "A cor na poesia contemporânea", no curso livre "A exaltação da cor", da responsabilidade de Alexandra Soveral Dias. Universidade de Évora, 12 de Abril de 2007.

(2) Ludwig Wittgenstein, Tratado Lógico-Filosófico - Investigações filosóficas. Tradução e notas de M.S. Lourenço e introdução de Tiago de Oliveira. Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1987.

(3) Todos os textos citações se referem aos dois volumes que recolhem os livros de poemas de Carlos de Oliveira,Trabalho Poético, Lisboa, Sá da Costa, 1976.

(4) Ludwig Wittgenstein, Anotações sobre as cores. Edição bilingue. Tradução de Filipe Nogueira e Maria João Freitas, revista por Artur Morão. Lisboa, Edições 70, 1987.

(5) Karl Popper, O Universo aberto. Lisboa, Dom Quixote, 1988.

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