Na Alquimia a pureza confunde-se com a própria Obra, que em metáfora visa transmutar metais vis em ouro, mediante a progressiva purificação. O ouro e a prata são os metais consagrados para referir macho e fêmea. No livro da autora duriense, se bem que mais extensamente bordado com elementos femininos, a força maior advém-lhe do masculino. Pode entretanto o feminino ocultar-se no interior do masculino, como acontece com o rio. Esse rio que ela garante chamar-se de ouro, com toda a propriedade poética, igual a nenhuma razão etimológica. A palavra Douro não se relaciona com metais, é um teónimo romano, Durus, construído a partir de dwr, termo celta que significa água. Ora água e terra são os mais específicos elementos femininos da Alquimia, em paralelo com os masculinos ar e fogo.
A água é o grande manto argênteo que aleita A secular do convento de Barrô: além do rio, ela aparece nas fontes, nos ribeiros, em repuxos nos jardins, em torrentes de chuva e lama nos temporais, em brando deslizar nos sulcos da rega. A rega, essa arte de que nasceu a própria Alquimia, junto aos canais de irrigação do Nilo. Com a rega alcançamos os alvores da civilização, devida à acção feminina, uma vez que à mulher se deve a invenção da agricultura. Foi a mulher o primeiro jardineiro, foi ela quem primeiro se lembrou de seleccionar sementes e plantas, para assegurar que só nascessem os frutos mais doces, maiores e mais belos. Entre eles, vamos nós seleccionar a laranja, masculina na cor de ouro, mas cuja flor simboliza a virgindade feminina:
É este concelho rico e populoso, gosa de muitos bons ares e produz tudo o que é essencial para a alimentação humana e também para a creação d'animaes domésticos, lanígeros e bovinos, de que tiram muito interesse esses povos.
Divide-se o concelho de S. Martinho de Mouros em quatro freguesias, sendo uma das melhores pela sua boa situação e suavidade do clima a de Barrô, cujo orago é Nossa Senhora da Assumpção.
Assenta-se esta em collina sobranceira ao rio Douro, pullulante de vegetação e arborisada de arvores fructíferas. Regam-na copiosas correntes d'agua crystallina e povoam-na muitas aldeias. Uma das mais bellas é Villar, a qual, além de aprasivel, é fertilissima especialmente em pomares de espinho, os quaes matizam a povoação e ostentam em competência os dourados e dulcíssimos fructos e as aromáticas e symbolicas flores, tão preciosas ás jovens que aspiram a ornarem-se com ellas em dia em que se realisam os votos de seu coração.
Maria do Pilar Osório, A secular do convento de Barrô
Fala a autora do ouro do rio, dos dourados frutos e de mais ouro ainda. Diz ele respeito às lendas de mouras encantadas, pois esta foi terra de árabes antes das conquistas dos senhores cristãos, entre os quais avulta um dos pilares da fundação da nacionalidade portuguesa, D. Egas Moniz de Ribadouro. Esse ouro que ainda se deve mencionar patenteia-se no topónimo Castanheiro do Ouro. Como vai sendo regra, no interior do masculino reside uma alma feminina: o ouro do castanheiro está associado à lenda de uma princesa moura apaixonada por um cavaleiro, como essa outra que viveu no castelo de Lamego, a princesa Ardinga. Escusado dizer que o sistema patriarcal vigente no Islão proíbe ainda mais do que o duriense a união entre cristãos e muçulmanos.
E aparece ainda, em Maria do Pilar Osório, um feminino no masculino onde menos se espera: em Luís, romântico herói à maneira de Werther, mas sobretudo romântica vítima à maneira de Teresa e Mariana, essas figuras incorpóreas de Camilo, como observa Eduardo Lourenço. Luís, o jovem apaixonado por Madalena, é feminino: ele tem uma beleza delicada e angélica, ele adoece de amor, e por amor morrerá, excluído por um rival que o manda envenenar. Esse rival é de todos o mais inaceitável para parceiro sexual, porque não é macho, fêmea, nem o andrógino da alquimia, sim um jesuíta.
A propósito do celibato do clero católico, direi que um dos factores da emancipação da mulher foi o desaparecimento da justificação do seu destino pela maternidade. A existência da mulher justifica-se por ela mesma, não pelos filhos. Ao controlar a sua própria natalidade, a mulher afirma o direito ao celibato, à recusa de reprodução, direito até à virgindade e à reclusão num mosteiro, se assim o desejar – e aqui está o termo-chave da independência, “desejar”. É o direito ao desejo que lhe dá corpo, tornando-a ser humano em plenitude. Ter ou não ter filhos não é uma questão feminina, é uma questão biológica e política.
Voltemos a Luís, objecto de certo desprezo pelo pai, por não ser rude, forte, feroz nem façanhudo como os heróicos antepassados, e mostrar antes uma figura efeminada, de poeta. Parecem invertidas as condições de macho e fêmea, para tornarmos à alquimia, pois Luís desempenha aqui o papel do mercúrio. E no entanto este feminino macho é activo, se bem que volátil. Ele vai para o céu – Mercúrio tem asas, não esqueçamos – assassinado pelo jesuíta, depois de ter raptado a mulher amada no dia do casamento dela, levando-a em perigosa viagem até à sede do poder patriarcal por excelência: o Vaticano. O Papa libertaria Madalena do inconsumado casamento com Bernardo Cabral, o marido imposto pelo pai? Eis um problema que a morte de Luís deixa em suspenso.
Vejamos um extracto do livro em que o feminino de Luís se manifesta de modo social, ao ser vítima, como as mulheres, da exclusão paterna ao direito de escolher consorte. Mais uma vez, a conversa revela que o clero é um dos pilares do sistema patriarcal:
—Seu filho, o senhor Luiz d'Athayde, vem por intervenção minha, supplicar a seu pae o seu consentimento para se enlaçar com uma das filhas de Pedro de Mascarenhas, a qual logrou agradar-lhe.
Ao ouvir estas palavras Fernando d'Athajde levantou-se correu a mão pela fronte, e moveu os passos d'um para outro lado.
O que acaba de me dizer, frei Thomé, surpreende-me e admira-me pela rasão de não ser desconhecida de meu filho a praxe usada entre famílias da nossa ordem em tão momentoso assumpto, a qual é acceitarem os filhos as esposas, que seus paes lhes escolhem, e não as procurarem a seu bel-prazer. Ora a que destino a meu filho está desde ha muito eleita e escolhida. E' como a desejo e cumpre seja a que tem de ser mãe de meus netos, e que tem de occupar um logar tão importante no seio de minha família.
Esta serie de palavras tinha sido tão precipitada e seguida, que não deixou ao religioso occasião de articular alguma. Quando a teve redarguiu, dizendo:
— Concordo em que aos paes assiste o direito de regular o destino de seus filhos; entendo, porém, que esse direito se deve modificar segundo as circumstancias, e a presente é d'esse numero, porquanto seu filho ama uma menina dotada dos mais nobres predicados e pertencente a uma família, cujo illustre appellido se enlaça com as glorias portuguesas.
Maria do Pilar Osório, A secular do convento de Barrô, pág. 67
O corpo não existe nas personagens da escritora duriense, porque o sistema lhes nega o direito ao desejo. É a tese de Eduardo Lourenço, ao contrapor as figuras femininas de Camilo às de Eça de Queirós, considerando Eça o primeiro romancista erótico em Portugal. Algumas mulheres de Eça seduzem com as artes do corpo, ao passo que em Maria do Pilar Osório, mais camiliana, a sedução não exerce os seus poderes de lado nenhum, e ainda menos da parte da autora, omissa por pudor em relação à expressão de desejo próprio ou ficcionado em outrem. No entanto as suas personagens acabam no convento por terem transgredido a Lei. O transgressor devia ter corpo, devia exercer a sedução, devia ser a serpente da fábula demoníaca. Não é.
A mulher apenas é vítima, e quantas vezes sem dar conta, quando lhe falta instrução. Se tem a instrução, pode não compreender o que sabe. Vítima do sistema económico e moral imposto pelos homens, ela tem sido assim um ser incompleto, humilhado, explorado no trabalho e maltratado em casa. Ainda há muito caminho a percorrer até todas as sociedades humanas alcançarem um mesmo grau de civilização elevada.
|