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O primeiro problema é o da classificação, e primeiro
porque as diligências africanas decorrem do meu livro Chão de Papel,
cujo título, traduzido, daria Bissau. Em que estante lineana se
arruma ele? - comecei por perguntar a mim mesma, antes de bater com a
cabeça nas paredes, diante de estudantes brasileiros que
esperam ouvir-me falar destes assuntos. E, já agora, sempre vou dizendo
que outra ferida é a de parecer mínima a cooperação portuguesa nos
estudos africanos, face à dos brasileiros, pelo menos na Internet.
No blog Senegâmbia, com grande simpatia, Duarte Figueiredo
assentou em que, tantos anos após a descolonização, o meu caderno de
poemas não podia
integrar-se na literatura colonial guineense; não o dizendo, ficou entretanto nas
entrelinhas que, não sendo eu bissau-guineense, também não podia receber
o rótulo de literatura guineense. Então trata-se de literatura portuguesa,
relativa a África, mais especificamente à Guiné-Bissau.
Diplomaticamente, o problema ficou solucionado, e até parece simples.
Sim, esta conversa está à beira de um
cataclismo emocional. Mais: entrar em consideração com as emoções do ex-colonizador é uma frivolidade, quando, após um mês de pesquisa,
verifico que, do lado de lá, ainda nem sequer está criado o mecanismo de
suporte
de uma literatura. Eu, que chego a Bissau mais de quarenta anos depois
de ter saído de lá, isto é, que só agora dedico atenção ao que tive, por
um período da minha vida, como minha terra, nha tchon, e não há
diplomacia que nos convença a renunciar a bens que não são materiais,
este nha tchon é territorialidade psicológica, quero que me classifiquem
como literatura guineense um caderno de poemas, quando os escritores
guineenses ainda não decidiram qual será o suporte linguístico da
sua literatura. Na Guiné-Bissau existe
uma literatura nascente, de acordo com a nação nascente, que, por isso
mesmo, por serem imagem especular uma da outra, ainda não alcançou uma
maturidade que permita classificá-la. Não é que a classificação
seja importante, mas é assim que pensamos, enfiando objectos em gavetinhas
hierarquizadas, com etiquetas por fora a dizer o que está dentro. Ora a
língua em que estão escritos os documentos dessa gaveta, a nacionalidade
dos que os escreveram, o tempo em que foram escritos, a nacionalidade do
território em que foram publicados, etc., leva a perguntar o que é a
literatura guineense. Eu não digo que não existam muitos textos
literários, que a produção não seja rica, questiono-me é sobre os
carateres que definem a literatura guineense. Afinal, são eles que
determinam que o meu Chão de Papel seja excluído do conjunto de
obras a que se pode ou não dar o nome de "literatura bissau-guineense".
Se atentarem na colaboração enviada para o TriploV
depois do meu pedido de textos guineenses, verificam que apareceu uma
série deles sobre João Vário (a questão não é a de João Vário ser
cabo-verdiano, sim a de os textos serem de um português, o poeta Luís
Serrano) (1) e um poema de João Rasteiro, a quem pedi duas linhas
de biografia a justificarem que eu incluísse aquele poema na literatura
angolana. Ao que ele respondeu não ter declarado que o poema era
angolano! Não, de maneira nenhuma, e prefiro transcrever o e-mail, o
João Rasteiro não se aborrece com isso:
Estelinha, eu não disse que o poema "é angolano", ele é
"lusófono", pois abarca todos os cinco paises africanos de
língua portuguesa (Ver Glossário).
Para além disso, como referi, ele resultou do concurso
efectuado pelo "Congresso Internacional de Literaturas
Africanas", no que concerne aos espaços de língua portuguesa.
Ah, e eu sou Licenciado em Literaturas Modernas, Variante de
Estudos Portugueses E Lusófonos.
POEMA = Geografia Lusófona
Esse "poema
lusófono", de João Rasteiro, "Cinco dedos na polpa da terra"
(2),
em 2003 obteve o prémio de poesia e conto "CINCO POVOS CINCO NAÇÕES",
promovido pelo "Congresso Internacional de Literaturas Africanas".
Não é
que tu não mereças prémios, João Rasteiro, pergunto é que literatura
pretendia estimular e promover
um Congresso Internacional de Literaturas Africanas. Além da literatura
portuguesa, da angolana, da moçambicana, da bissau-guineense, etc.,
agora aparece uma
literatura lusófona, capaz de abarcar pelo léxico e pelos temas todos os que falam português,
incluído o Brasil?
Posto isto, não nos
surpreendamos com o facto de António Cardoso Pinto, nascido em Angola,
de nacionalidade portuguesa, também ter acorrido ao meu apelo (3), e
sobretudo que ninguém se espante com essa ideia que me aflorou o
espírito, sim, de querer que o meu Chão de Papel fosse integrado
na literatura colonial portuguesa ou, mais radicalmente ainda, na literatura
guineense.
Voltando atrás da confusão, dizia eu que dada literatura assenta numa língua,
tal como a nacionalidade, e a jovem nação ainda não decidiu em que língua
vai escrever. Entendendo, enfim, com Fernando Pessoa, que «minha pátria é a
língua portuguesa», e que neste entendimento teria até o consenso dos
escritores guineenses, parece urgente, para eles, consolidarem um espaço
de ação escrita em que, por exemplo, o uso do crioulo já não tenha
propósitos de provocar o poder europeu, agora afastado, e o uso do
português não se transforme em aparelho castrador da criação literária.
Eu vivi na Guiné-Bissau quando ela era a colónia
portuguesa da África ocidental identificada como Guiné Portuguesa. Vivi
ali durante os anos mais
importantes para a nossa formação afetiva, dos 8 aos 18 anos. Cheguei a
Bissau ainda criança e
regressei na idade de frequentar a universidade. O meu pai era funcionário público, trabalhou na secretaria dos estudos
liceais, quando, incipientes, ainda as aulas se davam no Museu. Depois passou para o
Liceu Honório Barreto, logo que este abriu as portas, e ainda passou
pela secretaria da Escola Técnica, mais tardia ainda. Estreei o Liceu
ex-Honório Barreto, entrei no primeiro ano em que começou a funcionar. Quando?
Aí por volta de 1957-58. Não fiz quarta classe; depois da
terceira, na Escola Primária encostada ao paternal mangueiro da Praça,
passei directamente para o Honório Barreto, e lá fiz um ano designado
como de «admissão ao liceu». Meus professores mais importantes, porque
residentes, e não passageiros como os militares, foram a D. Anita Ribeiro e Silva (Português), a D. Clara Schwarz da Silva
(Francês), o Dr. Firmino (Inglês) e o Dr. Brandão (Filosofia e
Organização Política). Lembro-me de outros mas os nomes perderam-se nos
atalhos da memória. Como refiro em Chão de Papel, uma das
interdições a que estávamos sujeitos era a de falar crioulo nas aulas.
Hoje, as aulas continuam a ser dadas em português, mas a língua oficial
só é falada por 10% da população. A língua mais falada, pelo menos nas
cidades, é o crioulo, que chega a atingir 90%, e, acrescentadas a estas,
há as línguas étnicas. Espanta saber que nas campanhas eleitorais os
líderes, no interior, se fazem acompanhar de tradutor, que os deputados,
no Parlamento, falam crioulo, e que é igualmente em crioulo que se publicam documentos de caráter oficial.
O estado de coisas manifesta hesitação política em optar por uma língua.
As feridas não acabam aqui, na questão da língua em
que se escreve a literatura bissau-guineense, e não resisto a meter a
foice em seara que não me é assim tão alheia: é verdade, como regista
Moema Parente Augel (4), que a taxa
altíssima de insucesso escolar, no meu tempo do Liceu
hoje chamado Kwame N'Krumah, se devia ao facto de a maior parte dos meus colegas
só falar a sua língua étnica ou, na melhor das hipóteses, além dessa
também falar crioulo. A percepção dessa dificuldade criou-me no espírito a
ideia de que a língua oficial da Guiné-Bissau devia ser o crioulo. É na
nossa língua materna que sabemos escrever, que nos desembaraçamos
melhor, não em línguas estranhas. A
poesia, então, nem sequer a consigo distinguir da língua materna, de tal
modo que as traduções em geral me deixam tão indiferente como os poemas
escritos em línguas que não conheço. Porém fica a desvantagem que todos
conhecem em se adoptar uma língua de fraca expansão, abandonando outra,
como o português, em que o escritor africano pode projetar-se mais
facilmente no mundo.
Só um pormenor, antes de fechar a cortina: a
ortografia não tem importância por aí além, basta pensar que existe a
oratura, a literatura oral, das várias etnias, sem expressão escrita. A
literatura precisa de língua para se manifestar, mas não precisa de
escrita. Em todos os países se começou pela literatura oral, e, no
nosso, em Portugal, as mais importantes ferramentas de fixação das
ortografias, os dicionários, só aparecem lá para finais do século XVIII. Então a ortografia não tem grande importância quando se trata
de firmar ou não firmar um acordo ortográfico, por exemplo. Mas tem
importância capital quando se trata de fixar a grafia das palavras de uma língua
escrita nascente. É preciso a política tomar uma decisão drástica, sim, compete
aos políticos a unificação linguística. Não vamos ficar com
o conceito de crioulo manifesto nos dicionários em mil e uma formas:
criol, kriol, kiriol, criôl, e por aí adiante. De outra parte, há
grafias mais etimológicas, como creolo, e mais fonéticas, como kriol. A
diferença, em termos de inteligibilidade, é colossal: eu não entendo o
kriol skuru, isso parece código de agentes secretos! Basta a grafia
seguir a ondulação do português para esse «crioulo
escuro» ficar iluminado.
Mantenhas para todos. Britiande, 30
de Junho de 2010 |
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Maria Estela Guedes (1947,
Portugal). Diretora do TriploV
ALGUNS LIVROS. “Herberto Helder, Poeta Obscuro”, Lisboa, 1979;
“Mário de Sá Carneiro”, Lisboa, 1985; “Ernesto de Sousa – Itinerário dos
Itinerários”, Lisboa, 1987; “À Sombra de Orpheu”, Lisboa, 1990; “Prof.
G. F. Sacarrão”, Lisboa, 1993; “Tríptico a solo”, São Paulo, 2007; “A
poesia na Óptica da Óptica”, Lisboa, 2008; “Chão de papel”, Lisboa.
2009; “Geisers”, Bembibre, 2009; “Quem, às portas de Tebas? – Três
artistas modernos portugueses”, São Paulo, 2010. ALGUNS COLECTIVOS. "Poem'arte
- nas margens da poesia". III Bienal de Poesia de Silves, 2008, Câmara
Municipal de Silves. Inclui CDRom homónimo, com poemas ditos pelos
elementos do grupo Experiment'arte. “O reverso do olhar”, Exposição
Internacional de Surrealismo Actual. Coimbra, 2008; “Os dias do amor -
Um poema para cada dia do ano”. Parede, Ministério dos Livros Editores,
2009. TEATRO. Multimedia “O Lagarto do Âmbar, levado à cena em 1987, no
ACARTE, com direcção de Alberto Lopes e interpretação de João Grosso,
Ângela Pinto e Maria José Camecelha, e cenografia de Xana; “A Boba”,
levado à cena em 2008 no Teatro Experimental de Cascais, com encenação
de Carlos Avilez, cenografia de Fernando Alvarez e interpretação de
Maria Vieira. |