S. FREI GIL.....................LITERATURA EGIDIANA

A construção da imagem do Fausto,
de Cipriano de Antioquia a Fernando Pessoa
ARLINDO JOSÉ NICAU CASTANHO

[Faust:] On a tant écrit sur moi que je ne sais plus qui je suis. Certes, je n'ai pas tout lu de ces nombreux ouvrages, et il en est plus d'un, sans doute, dont l'existence même ne m'a pas été signalée. Mais ceux dont j'ai eu connaissance suffisent à me donner à moi même, de ma propre destinée, une idée singulièrement riche et multiple.
P. Valéry, Lust. La demoiselle de cristal - em «Mon Faust» (ébauches)

 

Neste estudo, que se pretende meramente introdutório às problemáticas abordadas, optei por eleger a imagem do Fausto como padrão universal do homem que ousa desafiar os limites do humano; limites que - quer se trate de um indivíduo de escol, empenhado na exibição de uma titânica hybris, ou de um pequeno arrangista mais ou menos consciente da sua irremissível pouquidade - tenta ultrapassar através da aliança com uma potência sobreumana, fundamentalmente maligna. É claro que, entre este Fausto arquetípico e muitas das personagens que aqui considerarei como seus avatares, existem profundas diferenças a não desprezar. Preferi, contudo, correr o risco de simplificar, convicto de que essa redução ao essencial me permitiria, neste caso, alcançar pontos de vista que espero possam ser tidos por aceitáveis e, eventualmente, produtivos.

Despontam em diversas literaturas, e em várias épocas, personagens históricas, para-históricas ou míticas aparentadas com a do Fausto, e muito anteriores ao de Goethe. As tradições em torno à atribulada história Teófilo, por exemplo, só por si dariam azo a um ou vários aturadíssimos estudos. Contudo, e na esteira dos pressupostos apresentados no parágrafo anterior, reputo lícito deixar de parte a longa fileira de escritores que glosaram tal tema, entre os quais se descortinam Rosvita, Afonso o Sábio, Gauthier de Coincy, Rutebeuf, Berceo. Entre os que vieram depois de Goethe, e que no entanto continuaram a cultivar essas mais antigas tradições faustianas lato sensu, tocará a mesma sorte às revisitações oitocentistas da lenda nacional de São Frei Gil de Santarém, mesmo que ostentem a ilustre assinatura de um Almeida Garrett (D. Branca, 1826) ou de um Eça de Queirós (o conto S. Frei Gil, publicado póstumo[1]). E o mesmo sucederá a outros Faustos post-goethianos, como será o caso, por exemplo, de Don Juan und Faust de Christian Dietrich Grabbe (1829) e de «Mon Faust» (ébauches) de Paul Valéry (1946) - este último a merecer um ulterior confronto com o Fausto de Pessoa, de que é praticamente contemporâneo do ponto de vista genético. À falta desse almejado confronto, que nesta sede resultaria deslocado, note-se pelo menos que o Faust de Valéry se revela, tal como o Fausto de Pessoa, uma obra incompleta; mas a pretensa incompletude da obra de Valéry não parece ser mais do que uma espécie de mise en scène, de estratagema retórico habilmente congeminado pelo autor, enquanto o Fausto de Pessoa é um texto genuína e irremediavelmente fragmentário, publicado só após a morte do autor (ocorrida em 1936) e em duas versões bem diversas - seja pelo modo como os respectivos organizadores puseram em prática a margem de discricionariedade necessária à reconstrução do texto, seja pela quantidade dos documentos originais a que tiveram acesso[2]. Parecem-me dignos de destaque, pelo contrário, dentro da perspectiva restritiva que por ora elegi, os testemunhos faustianos - sempre lato sensu - universalmente mais divulgados de entre o teatro espanhol de Seiscentos; e também aqui procedo a uma intencional restrição, deixando de fora, por exemplo, a peça de Juan Ruiz de Alarcón y Mendoza Quien mal anda en mal acaba (de data incerta: 1602?[3]), que Aldo Ruffinatto considera muito mais pertinente ao tema do Fausto do que as obras de outros mais afortunados dramaturgos da época, habitualmente trazidas à colação a tal propósito[4].

 
 
In: Artifara, n. 1, (luglio - dicembre 2002), sezione Monographica, http://www.artifara.com/rivista1/testi/Fausto.asp