S. FREI GIL.....................LITERATURA EGIDIANA

A construção da imagem do Fausto,
de Cipriano de Antioquia a Fernando Pessoa
ARLINDO JOSÉ NICAU CASTANHO

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O que parece seguro e particularmente nos pode interessar é que, após a morte do Fausto histórico, ocorrida em torno a 1540, já por volta de 1560 a história fantasiada do mago alemão circulava em Espanha, tendo-se tornado popularíssima, até, entre os estudantes de Salamanca. Mas às lendas que rodeavam o Fausto histórico foram preferidas, na literatura espanhola do Siglo de oro, as que diziam respeito aos seus "antepassados" paleocristãos Cipriano de Antioquia e Teófilo, e a duma espécie de "Fausto português" do séc. XIII, Frei Gil de Santarém, como se pode desumir da leitura dos dramas El esclavo del Demonio, de Mira de Amescua (1612), e El mágico prodigioso, de Calderón de la Barca (1637)[5].

É indiscutível a influência exercida por El esclavo del Demonio sobre El mágico prodigioso[6] (evidenciada, por exemplo, na tomada de empréstimo da cena da aparição do esqueleto) - ainda que Mira de Amescua se tenha directamente inspirado nos relatos à época disponíveis sobre o já mencionado "Fausto português" do séc. XIII, por ele eleito como protagonista do seu drama[7], e que Calderón tenha preferido tomar por base uma tradição faustiana muito mais antiga - isto é, a que se refere ao legendário mago de Antioquia, posteriormente convertido ao cristianismo, martirizado e beatificado; beatificação que a Igreja anulou no século passado, tomando em conta a completa ausência de dados históricos minimamente credíveis acerca da existência deste Cipriano, que mais parece despontar do amálgama de elementos biográficos avulsos, próprios de várias personagens históricas pagãs suspeitas de bruxaria, como Apuleio, e de alguns ecos espúrios a propósito do passado de um outro Cipriano - este, indubitavelmente histórico -, S. Cipriano de Cartago, que incidem sobre as presumíveis dissolutezas deste último, antes da sua remissora conversão. Calderón baseou-se na lenda de Cipriano de Antioquia, assim como era transmitida em vários hagiológios, Flos Sanctorum e Acta Sanctorum correntes na época, e sobretudo na Legenda aurea de Iacopo da Varazze.

Convirá esboçar, agora, um breve resumo da lenda de S. Cipriano, a qual parece ter começado a tomar forma de letra no séc. IV, numa homilia de S. Gregório Nazianzeno, e depois no século seguinte, num poemeto da imperatriz Eudócia. Cipriano era um pagão iniciado precocemente nas mais diversas tradições mistéricas da Tarda Antiguidade, desde os ritos secretos de Apolo aos de Mitra e de Deméter. Tinha feito, em seguida, longos tirocínios mágicos na Frígia, no Egipto, na Caldeia e alhures, estabelecendo-se depois em Antioquia - ou aí se restabelecendo, pois não sabemos se essa era a sua cidade natal ou não -, onde gozou de sólida fama como hierofante e taumaturgo.

É então que a história de Cipriano se entrelaça com a de Justina, uma jovem de rara beleza recém-convertida ao cristianismo. Um jovem advogado pagão da cidade, Aglaidas ou Acládio, enamorou-se de Justina, mas esta permaneceu completamente insensível às suas solicitações. Aglaidas contratou então Cipriano para que o mago vencesse, com as suas artes diabólicas, as resistências da rapariga.

As tentativas de Cipriano revelam-se um falhanço total, uma vez que a moça se demonstra "blindada" contra as feitiçarias, graças ao seu sistemático recurso ao sinal da cruz. Para mais, Cipriano acaba por enamorar-se da jovem que devia conquistar por conta alheia (o que torna o seu caso bastante parecido com o do Cyrano de Edmond Rostand).

É mesmo por causa dos repetidos insucessos de Cipriano que entra em cena o tema do pacto com o diabo: um sodalício que, neste protótipo da lenda de Fausto, apresenta alguns pormenores decididamente originais, em relação ao que a mesma virá a ser, nas suas futuras manifestações literárias. Com efeito, Cipriano submete-se de má fé à aliança com o diabo, com a única intenção de entrar na posse de uma informação reservada: mal se apropria da mesma, denuncia o acordo. Entrando agora na narração específica do episódio: o diabo responde às lamentelas de Cipriano a propósito da falta de eficácia dos feitiços até então urdidos contra a resistência de Justina, dizendo que esta se servia de um sinal contra o qual ele, o diabo, nada podia. Cipriano perguntou-lhe, é claro, de que sinal se tratava, mas o diabo retorquiu-lhe que só lho revelaria a troco de um prévio pacto formal: um pacto ainda, neste caso, meramente verbal, mas nem por isso menos solene e vinculativo do que os seus congéneres escritos, assinados com o sangue do postulante, de que posteriormente teremos notícia.

Cipriano dá o seu aval, e o pacto é concordado. O diabo revela-lhe então o sumo poder do sinal da cruz, contra o qual nenhum feitiço pode prevalecer - e Cipriano logo declara o pacto invalidado, com o argumento irrefutável de que, se esse sinal era assim tão poderoso, mais lhe valeria abrigar-se à sua sombra protectora do que àquela do diabo. Nem sequer deveria recear as consequentes represálias do demónio, uma vez que, daí por diante, lhe bastaria recorrer ao sinal da cruz para o pôr em fuga.

Encontramo-nos na presença de uma lenda de origem francamente popular, como assinala Fumagalli[8]. E foi sobretudo o povo que a conservou e transmitiu através dos séculos, pelo menos na Península Ibérica, até aos dias de hoje. Esta lenda, assim como outras de formação mais ou menos coeva (como a que diz respeito a Teófilo, de que mais adiante falaremos) ou outras sensivelmente posteriores (como as que dizem respeito ao Fausto propriamente dito), acalenta uma atitude algo dúbia em relação às práticas mágicas: por um lado, transmite-nos a mensagem essencial - a mais evidente de todas - de que não há magia mais forte que a de Cristo, sendo o arrependimento do negromante não só possível mas até absolutório, uma vez que Cristo, ao cabo e ao resto, acaba por perdoar; mas, por outro lado, a circunstância de que o pacto com o diabo possa ser dissolvido a qualquer momento, pelo recurso ao poder superno de Cristo, desdramatiza e diminui a gravidade do pacto satânico em si, anulando até a sua pressuposta indissolvibilidade. Por outras palavras: se a mensagem primordial reside na demonstração da inferioridade dos poderes demoníacos em relação àqueles de que a Igreja dispõe, subsiste no entanto uma segunda mensagem, subentendida e equívoca, segundo a qual o estabelecer pactos com o diabo não é uma coisa assim tão grave, uma vez que podem ser desfeitos quando mais nos convém, sem que resulte definitivamente comprometida a futura salvação das nossas almas.

 
In: Artifara, n. 1, (luglio - dicembre 2002), sezione Monographica, http://www.artifara.com/rivista1/testi/Fausto.asp