VII Colóquio Internacional
"Discursos e Práticas Alquímicas"
LAMEGO - SALÃO NOBRE DA CÂMARA MUNICIPAL
22-24 de Junho de 2007

INICIAÇÃO FEMININA:
ASTROLÓGICA, MÁGICA, ALQUÍMICO-HERMÉTICA
OU CABALÍSTICA?
por ANTÓNIO DE MACEDO

INDICE
Introdução
1. Os Mistérios antigos
2. A origem das Ordens
3. A Ordem de Melquisedec e as formas iniciáticas originárias
4. O estabelecimento das Ordens e os mitos fundadores
5. As duas linhagens: a do Fogo e a da Água
6. As Ordens sagradas primordiais: cainita e sethiana
7. A ROC e a ROT
8. A deusa-padroeira das Tecedeiras
9. A Ordem de Arachne
10. A decaída de Penélope
11. Um fio tradicional alternativo?
12. Das tradições mesopotâmica e judaica à modernidade ocidental
13. E se a ROT afinal não desapareceu?
14. Tradicionismo de ofício — um rito viável?
15. Conclusão provisória
Bibliografia sumária
9. A Ordem de Arachne

Chegados aqui, e com os dados de que dispomos, talvez nos encontremos neste momento um pouco mais habilitados para levantar uma pontinha do véu do mistério que recobre o desaparecimento da Iniciação feminina protectiva, ou seja, o da Real Ordem das Tecedeiras (ROT).

Dizia-se que a primordial Iniciação da ROT fora bebida nos Mistérios Órficos, pois a filha de Cibele-Deméter, Perséfone, era a Koré, ou a jovem vegetação filha da Terra-Mãe, toda ela tecida à semelhança do vasto peplum, ou colorido manto recamado, que é o céu, sendo este como que a vestimenta dos deuses urânicos: Koré seria portanto a divina tecedeira iniciadora da ROT (Dujols 1991, 89). Tal como a doméstica Penélope, em contrapartida, teria dado origem ao ofício profano — das mulheres que ficam em casa. Mas de Penélope falaremos mais tarde.

Na desafortunada ausência de documentos históricos, poderemos sempre — não sem risco, embora — tentar descodificar a verdade oculta que se encontra arcanamente camuflada nos mitos.

Um desses mitos, e dos mais instrutivos, referente ao corte oculto que sofreu a Iniciação feminina é o de Arachne, que vem referido em alguns autores antigos, como Virgílio, Ovídio, Sérvio, Plínio… O autor que mais o pormenoriza é Ovídio (43 a.C.-17 d.C.) na sua obra-prima Metamorfoses, um longo poema em quinze livros onde encontramos esse mito bastante desenvolvido e repleto de sugestivas pistas.

As Metamorfoses são um poema épico único no seu género, uma exaustiva antologia cronológica de episódios mitológicos e lendários em que o tema recorrente e obsessivo é o da metamorfose, ou da transformação, ou melhor ainda: da transmutação — o que nos revela o cariz alquímico de toda a obra. Na enorme colecção de histórias narradas nem sempre é óbvia, todavia, a transmutação do chumbo em ouro, pelo contrário, quase sempre parece cair-se na regressão — como se fosse possível reverter do ouro ao chumbo! Na verdade, as fábulas das Metamorfoses em que seres humanos prevaricam e são castigados (provados), sendo transformados em monstros, em plantas, em animais, ou mesmo em minerais, não estão a historiar uma regressão, mas a propor um símbolo que terá de ser entendido num contexto probatório — a «prova da Esfinge» —, e portanto iniciático, uma vez que a Esfinge resume a prova dos quatro elementos, ou das quatro naturezas: o corpo de touro (Terra), as asas de águia (Água), o rosto humano (Ar) e as garras de leão (Fogo) são mais do que claros índices da occulta philosophia hermética velada/desvelada nos mitos do poema.

O mito de Arachne, no caso que nos ocupa, relata-nos um determinado drama histórico: o drama duma tradição perdida. E as circunstâncias dessa perda, dissimuladas sob a cifra e o símbolo, são-nos descritas precisamente nos 142 versos do livro VI daquela obra de Ovídio que a esse mito se referem.

Quem era Arachne? Comecemos pela sua ascendência. Natural de Cólofon, cidade da Jónia, na Ásia Menor, o seu pai Idmon tingia lãs com púrpura da Fócida:

Phocaico bibulas tingebat murice lanas (Ovídio 1961, VI, 9).

Era ele pois um tintureiro, modo velado de desvelar que se tratava dum espagirista, cuja arte Fulcanelli nos pormenoriza no seu livro As Mansões Filosofais: a Espagíria é a contraparte manipulatória da Alquimia, inspirando-se nos altos princípios herméticos desta última mas descendo aos secretos labores sobre a matéria que permitem obter surpreendentes efeitos práticos. As transmutações que a Alquimia contempla na sua filosofia espiritual materializam-se na arte espagírica, que tanto ajuda ao vidreiro como ao metalúrgico, ao tintureiro, ao esmaltador ou ao que pretende obter ouro. Arachne, filha dum espagirista, era pois uma iniciada na arte de tecedeira em que se tornara incomparável. A sua fama ia tão longe que as ninfas das montanhas e dos rios da Frígia e da Lídia saíam das grutas onde habitavam para vir admirar os seus trabalhos, e era tão perfeita a tecer que se dizia ter sido ensinada por Palas — nome ritual da deusa Athena, outras vezes também chamada, redundantemente, Palas Athena.

Arachne, tão hábil a tecer como orgulhosa, detestava que a considerassem discípula de Athena, pois entendia que os segredos da sua arte de ninguém os aprendera e só a ela mesma os devia, e um dia ousou desafiar a própria deusa: «Que venha competir comigo, disse, a tudo me submeterei se for vencida!» (Ovídio 1961, VI, 25).

Athena tentou dissuadi-la, mas Arachne, ousada e insubmissa, persistiu, e por fim a deusa, irritada, aceitou disputar com ela a prova de quem haveria de tecer a melhor tapeçaria. Passemos por alto a extraordinária descrição que Ovídio faz dos trabalhos de ambas, e realcemos apenas que a tapeçaria de Arachne ilustrou em expressivas imagens o assédio sexual de deuses machos às pobres mortais desprevenidas, a algumas ninfas e até a divindades, como por exemplo Júpiter disfarçando-se de touro para raptar a jovem Europa, de cisne para cativar Leda, de sátiro para violar Antíope, de serpente para penetrar Prosérpina, de ouro para seduzir Danae, de fogo para fascinar Egina, ou Neptuno disfarçado de touro para possuir a virgem Arne, filha de Eolo, de carneiro para conquistar Bisaltis, de rio para sujeitar Ifimédia, mulher de Aleus, de cavalo para seduzir a deusa Ceres, de golfinho para violar Melanto filha de Proteu, que gostava de cavalgar golfinhos… e vários outros, como Apolo, Baco, Saturno…

O trabalho de Arachne era tão perfeito que a deusa não suportou a afronta da terrível acusação, que ultrapassou os limites da impiedade: era o grito da Iniciada que não tolera o ultraje à sua essência de ser humano e sobretudo de mulher: os deuses machos têm o sexo feminino em tão baixa conta que entendem ser a melhor maneira de conquistá-lo o disfarçarem-se de animais ou de minerais!

A deusa Athena em cólera despedaçou a tapeçaria de Arachne onde os divinos e nefandos crimes se exibiam, e bateu-lhe no rosto, três ou quatro vezes, com a lançadeira que tinha nas mãos. Arachne desesperada correu a enforcar-se mas, no momento em que se suspendeu, Athena impediu-a de morrer — e transformou-a em aranha, supensa do fio.

É nítido, neste mythos, o contorno duma tradição iniciática que se perdeu. A arte de fiar e de tecer, possuída pela deusa mas cujos segredos eficazes Arachne herdara e aprimorara a partir duma longínqua tradição (o pai era um espagirista, mas ela era uma alquimista!), remonta aos tempos pré-atlantes, e o corte, ou a suspensão, que o mito relata pela queda no estatismo animal desvenda-nos que a Real Ordem das Tecedeiras (ROT) teve o seu fim nesse ponto conflituoso do certame entre Arachne e Athena. A aranha, ao contrário da evolutiva humanidade, é incapaz de melhorar a sua teia, ou o seu bordado, tal como as abelhas que Virgílio nos descreve no livro IV das Geórgicas mostram tanta habilidade técnica a fazer o mel como passados mais de dois mil anos as abelhas de hoje, que não acrescentaram nada ao que as suas ancestrais já sabiam.

INICIATIVA:
Centro Interdisciplinar de Ciência, Tecnologia e Sociedade da Universidade de Lisboa (CICTSUL)
Instituto São Tomás de Aquino (ISTA)
www.triplov.org

Patrocinadores:
Câmara Municipal de Lamego
Junta de Freguesia de Britiande
Dominicanos de Lisboa

Fernanda Frazão - Apenas Livros Lda
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