HENRIQUE GALVÃO
(Família Felidae)






O leopardo do Cáucaso [?] - Em Lydekker (1899) [Irbis, Himalaias]

Felis aurea, em Sclater (1867) - Sumatra






Felis jacobita Cornalia, 1865 - Argentina

Henrique Galvão (1) pertence à linhagem de exploradores-naturalistas como Capello, Ivens e Serpa Pinto. Militar de carreira como eles, também ele fez a travessia de amplas zonas africanas até aí desconhecidas - primeiro reconhecimento do rio Cuando, num percurso de mil quilómetros, no sudeste de Angola, entre o Bié e a Faixa de Caprivi, na fronteira com o Botswana. O Bié fora no século anterior um dos poisos de José de Anchieta para o reconhecimento científico da região, em especial zoológico. Para sul, mas na direcção do Cunene e não do Cuando, tivemos Francisco Newton, mas é de crer que quando atravessou várias vezes o Cunene, sem temor dos crocodilos, Newton estivesse em Timor.

Em meados do século XX, Portugal prosseguia assim a tarefa encetada pelos naturalistas que, a partir da base institucional representada pelo Real Jardim Botânico da Ajuda, embarcaram em 1783 para o reconhecimento científico das colónias portuguesas da Ásia, da América e da África.

Cabe aqui lembrar Ângelo Donati, esse grande desconhecido, naturalista e desenhador que integrava a equipa destinada a Angola, e que morreria pouco depois do desembarque : chegados a Benguela, escreve a Mattiazzi, jardineiro-chefe do Real Jardim Botânico da Ajuda, dizendo que breve sairiam do Reino do Congo para seguirem para Angola (Luanda). Donati era um italiano vindo de Pádua, façamos uma excepção - meramente estratégica - na língua das gralhas, para admitir que, se em meados do século XX o interior de Angola ainda estava a ser descoberto, é possível que no século XVIII os europeus ainda não soubessem que o Congo fica a norte de Luanda e Benguela muito a sul das terras da Rainha Ginga.

Henrique Galvão era um intelectual (os intelectuais costumam consultar os índices dos atlas para verificarem toda a informação, porque só sabem, como Sócrates, que sabem muito pouco, e no caso vertente ainda não descobriram nenhum Reino do Congo de que Benguela fizesse parte), por isso devia saber distinguir do Cuando o Zaire e o Zambeze. Aliás tinha intensa e extensa experiência africana, razões mais do que bastantes para o desespero o ter transmutado no felino que se assanhava por Salazar mentir e não dar ouvidos aos relatórios realistas e verídicos que lhe enviava (veja o excerto da sua Carta aberta a Salazar, no fim deste trabalho). Na linhagem então de Ivens, Capelo e Serpa Pinto, Henrique Galvão é também um antecessor directo dos capitães de Abril, aqueles que em 1974 derrubaram a ditadura em Portugal.

Da travessia aventurosa ao longo do Cuando veremos uma foto da comitiva, inserida no volume sobre o leão de "Da vida e da morte dos bichos". Esta obra vem assinada em primeiro lugar por um dos seus colaboradores e companheiros de caçadas, porque democraticamente os três autores optaram por assinar em ordem alfabética. Mas os caracteres discriminantes da prosa pertencem a Henrique Galvão, que aliás assina sozinho o quinto volume, extra-série.

Como os três heróis criados pela Sociedade de Geografia de Lisboa - Capelo, Ivens e Serpa Pinto -, também ele estudou História Natural na Escola Politécnica, também ele se ligou a museus. Foi responsável por várias exposições coloniais, entre elas pelo sector de História Natural na Exposição do Mundo Português, em 1940.

Como os autores de "Como eu atravessei a África" e "De Angola à contracosta", também ele é escritor, mas muito mais prolífico - de contos, romances, peças de teatro, política e administração ultramarina, antropologia e zoologia, etc.. Na área da antropologia, é impossível arredar da memória o título "Antropófagos". Livro terrível sob vários aspectos, em especial por denunciar que essa prática arrepiante grassava em todo o continente africano, exceptuados quase só Cabo Verde e o Norte de África, o que levanta o problema de saber em que consistiu afinal a missão civilizadora da Europa em África, sobretudo depois de toda a vanglória nesse sentido das potências europeias, na sequência da Conferência de Berlim - afinadas pelo tom de Leopoldo da Bélgica, todas reclamavam que os seus objectivos eram estritamente humanitários e científicos. Estritamente humanitários e o canibalismo e a escravatura reinavam, esta a despeito de todas as leis abolicionistas. Estritamente científicos e a África ainda não estava desbravada em meados do século XX, para não dizer que ainda não está hoje cientificamente reconhecida na sua totalidade. Por detrás disto tinha de existir uma tremenda hipocrisia, que obrigou o leopardo a saltar sobre a mão que lhe dava de comer, e pertencia a uma fera com a qual razoavelmente convivera.

De diferente dos que o antecederam nos sertões, selvas e desertos africanos, Henrique Galvão tem mais revoluções no currículo (uma delas o 28 de Maio), prisões, uma evasão e um acto de terrorismo que levou Portugal a todos os meios de comunicação internacionais, em 1961 - o assalto ao paquete Santa Maria, cheio de turistas, esse acto de pirataria que por nome de código recebeu o de Operação Dulcineia.

Porquê Dulcineia? Sim, porquê Dulcineia e não Laura ou Beatriz? Sobretudo, porque não Dinamene, amada bem lusitana apesar da sua origem asiática? Estes actos pensam-se e escolher o nome de uma operação secreta requer certamente tanta pré_meditação como escolher o título de um livro. Nada portanto de Camões, nada que vinculasse o gesto a posições nacionalistas. Há uma Desejada bem expressa no código, mas não é sebastiânica. O seu messianismo é de raiz mais ibérica do que o lince ibérico ou da Serra da Malcata, porém transatlântico, visa a cidadania internacional e não este hiato num Império de mutismo forçado que era Portugal, cortadas as ligações de franco diálogo com o resto do mundo.

Porque de um lado o capitão Henrique Galvão se sabia um sonhador, não por impossível a missão de conquistar a liberdade, mas porque D. Quixote estava muito desapoiado - afinal só comandava 23 homens no assalto ao Santa Maria e Portugal era um império, não um navio de recreio. Mas é bem verdade que sem utopias o tempo não arreda pé da sua soturna sesta, que sem actos desmedidos todas as medidas são mesquinhas, por isso, à escala de um grande país entorpecido pelo sono, o acto foi tão surpreendente como o salto de um mortífero leopardo.

Henrique Galvão escolheu "Operação Dulcineia" para nome de código porque Cervantes é um autor de língua castelhana, e foi em terras de expressão espanhola que encontrou asilo político e apoios - Argentina e Venezuela. Boa parte dos homens que comandou eram espanhóis. Foi a partir da América de raiz espanhola que a operação se desencadeou. E foi Jânio Quadros quem o recebeu no Brasil finda a aventura.

D. Quixote morreu pouco antes de ver a sua Dulcineia, sem saber que estava tão perto a Desejada - a liberdade para a qual contribuiu fortemente. O objectivo do assalto foi o de provocar aquilo que mais aterrava Salazar: que o mundo falasse de nós. Falou, a imprensa de todo o mundo voltou os olhos para Portugal, por isso a "Operação Dulcineia" alcançou o sucesso, e D. Quixote não arriscou a vida a combater contra moinhos de vento.

Maria Estela Guedes


Em "Da vida e da morte dos bichos"

_______________________

(1) Nascido em 1895, morreu em 1970 e em 1971, de acordo com as fontes consultadas.

FONTES

CABRAL, Teodósio, Henrique Galvão e Abel Pratas [1941] - Da vida e da morte dos bichos. Subsídios para o estudo da fauna de Angola e notas de caça. Livraria Popular de Francisco Franco, Lisboa, 3ª edição, s/d., 4 vols. 1ª ed. 1934.

DONATI, Ângelo (1783) - Carta de S. Filipe de Benguela, 10 de Setembro, para Júlio Mattiazzi. Arquivo histórico  do Museu Bocage, CN/D-6. 

Dicionário Enciclopédico da História de Portugal (1985). Publicações Alfa, Lisboa. 2 vols.

GALVÃO, Henrique [1941] - Da vida e da morte dos bichos. Narrativas de caça grossa em África. V volume (extra-série). Livraria Popular de Francisco Franco, Lisboa, 3ª edição, s/d., 254 pp.. Primeira edição, 1934.

GRANDE ENCICLOPÉDIA PORTUGUESA-BRASILEIRA.

MEDINA, João (dir.) (1990) - História Contemporânea de Portugal. Estado Novo, volumes I e II.