Da isenção do pecado ou negação gnóstica (ou gnóstico-pessimista, aceita essa separação entre gnosticismo, ou gnose pessimista, e hermetismo, ou gnose otimista) da culpa pode ter resultado um relativismo ético ou niilismo. Se o mundo e o corpo são intrinsecamente maus, não mais obra do Deus bom, ou, como nos panteísmos, impregnados do divino, porém algo como, pode-se dizer, um erro cósmico de fabricação, então tanto faz. Daí fazer sentido a hipótese da existência dos gnósticos licenciosos.
Pode-se, por isso, associar gnosticismo à inquietação intelectual, ao inconformismo e insatisfação diante do mundo, e à conseqüente vontade de superá-lo ou transcendê-lo. Sob este aspecto, William Blake representa uma reaparição do gnosticismo na poesia, conforme observado por Pagels, Bloom, Hoeller, e outros estudiosos. Um exemplo seriam as passagens de The Everlasting Gospel, com sua exaltação da experiência individual (traduzo de The poems of William Blake , Oxford University Press, 1960):
A Visão do Cristo que tu vês
É a maior inimiga da minha visão.
A tua tem um grande nariz adunco como o teu,
A minha tem um nariz redondo como o meu.
A tua é a do Amigo da Humanidade;
A minha fala em parábolas aos cegos.
A tua odeia o mesmo mundo que a minha odeia;
As portas do teu céu são os portões do meu inferno.
[...]
Ambos lemos a Bíblia noite e dia,
Mas tu lês negro onde eu leio branco.
Daí - desse ímpeto rebelde no gnosticismo - a importância que lhe é atribuída, entre outros, por André Breton. No ensaio Flagrant délit (em La clé des champs, Le livre de Poche, 1979) o surrealista, a propósito da descoberta dos papiros gnósticos de Nag Hammadi, textos em copta encontrados no Egito a partir de 1945, apresenta-se como continuador de uma tradição cuja origem estaria no gnosticismo:
Sabe-se, com efeito, que os gnósticos estão na origem da tradição esotérica que consta como tendo sido transmitida até nós, não sem se reduzir e degradar parcialmente ao correr dos séculos. (Os Templários teriam recebido seus preceitos na Ásia, na época das primeiras cruzadas, de um resto de maniqueus que lá encontraram). Ora, é notável que, sem haverem de modo algum combinado isso, todos os críticos verdadeiramente qualificados de nosso tempo foram levados a estabelecer que os poetas cuja influência se mostra hoje a mais vivaz, cuja ação sobre a sensibilidade moderna mais se faz sentir (Hugo, Nerval, Baudelaire, Rimbaud, Lautréamont, Mallarmé, Jarry), foram mais ou menos marcados por essa tradição. Não, é certo, que se deva tê-los por "iniciados" no sentido pleno do termo, mas os uns e os outros pelo menos foram submetidos fortemente a sua atração e nunca deixaram de testemunhar-lhe a maior deferência.
Algo semelhante é observado por Susan Sontag no prefácio para a edição norte-americana de Artaud (Antonin Artaud, Selected Writings, Farrar, Strauss and Giroux, 1976, publicado no Brasil em Sob o signo de Saturno, L&PM, 1986):
Artaud perambulou no labirinto de um tipo específico de sensibilidade religiosa, a gnóstica. (centrais ao mitraísmo, ao maniqueísmo, ao zoroastrismo, ao budismo tântrico, mas empurradas para as margens heréticas do judaísmo, do cristianismo e do islamismo, as perenes temáticas gnósticas aparecem nas diferentes religiões com diferentes terminologias, mas com certos traços comuns). [...] O pensamento de Artaud reproduz a maioria dos temas gnósticos. [...] Como os alquimistas, obcecados com o problema da matéria nos termos classicamente gnósticos, procuraram métodos para transformar uma espécie de matéria em outra (mais elevada e espiritualizada), Artaud procurou criar uma arena alquímica que operasse na carne tanto quanto no espírito.'
|