Havia prometido - a mim e a apreciadores da poesia de Hilda Hilst - prosseguir o que foi exposto em Amavisse , de Hilda Hilst: pacto com o hermético, publicado em Agulha (1), por sua vez a transcrição de um artigo publicado em 1990 no caderno Idéias do Jornal do Brasil, a propósito do lançamento do livro de poesias Amavisse. Especialmente, prometera ampliar o exame da presença do gnosticismo em sua obra.
Isso resultou em um novo texto, também publicado em Agulha, intitulado Gnose, gnosticismo, e a poesia e prosa de Hilda Hilst (2) também disponível em Agulha. Entre um artigo e outro - o do Jornal do Brasil de 1990 e aquele de Agulha 46, pesquisei mais o gnosticismo, e preparo uma monografia ou capítulo de algo sobre essa doutrina.
Já havia escrito sobre Hilda Hilst - poeta paulista nascida em 1930 e falecida em 2004 - em 1980, para registrar meu entusiasmo com as imagens poéticas de Da Morte - Odes Mínimas, na revista Isto É. Em 1987, escrevi sobre a coletânea de textos em prosa Com os meus olhos de cão (então lançada pela Brasiliense). Logo a seguir, em 1991, voltaria à carga, a propósito do Caderno Rosa de Lory Lamby, dessa vez no Jornal da Tarde, rebatendo as críticas à pornografia nessa narrativa, sustentando tratar-se de um relato alegórico. Também já comentei Diário de um sedutor, e dei palestras sobre sua poesia e sua prosa.
Na produção extensa de Hilda Hilst, reunida, a partir de 2001, nos volumes da sua Obra Completa pela Editora Globo, poesia e prosa são vertentes distintas, porém complementares (acrescidas ainda por sua produção teatral). A poesia freqüentemente é mais concisa e contida, com um sentido de apuro formal, mais evidente no lírico Júbilo, memória, noviciado da paixão. É esplêndida nas imagens poéticas do tipo visual, particularmente em Da Morte - Odes Mínimas. A prosa, boa parte dela já reunida em Com os meus olhos de cão, publicado pela Brasiliense em 1986, é anárquica, transgressiva, exuberante e delirante. Prosa e poesia correspondem, portanto, a pólos da contração e expansão, elipse e hipérbole. Cada um dos livros em prosa parece fragmento de um texto infinito (o que é indicado por um dos títulos, Fluxofloema). Textos de invenção e ruptura, particularmente o escatológico (nos dois sentidos da palavra) A obscena Senhora D. Essa obra em prosa inclui uma trilogia, iniciada pelo Caderno Rosa de Lory Lamby, de 1990, seguida por Contos d'escárnio. Textos grotescos e por Cartas de um sedutor, designada pela própria Hilda como "pornográfica" (chamá-la de obscena seria mais correto), que suscitou polêmica e reprovações.
É preciso, antes de mais nada, deixar claro o seguinte: blasfêmias, religiosidade herética, misticismo pessoal, afinidade com gnosticismo, com sistemas filosófico-religiosos do oriente, budismo e hinduísmo, com outras doutrinas, hermetismo inclusive, e com poetas-místicos cristãos - tudo isso, já observado pela própria Hilda Hilst ou por comentaristas, é inseparável de sua densidade, de sua dimensão propriamente metafísica e ao mesmo tempo transgressiva.
Contudo, o que a torna uma grande poeta é, em primeira instância, a capacidade de criar imagens poéticas através da aproximação de realidades distantes. Por exemplo, ao enxergar (aqui citando Amavisse , na edição de Massao Ohno de 1989, toda anotada por mim -esses poemas foram republicados em Do Desejo , editora Pontes, 1992, e pela Globo, em suas obras completas) Os ponteiros de anil no esguio das águas . Ao dizer que uma mulher dentro dela tinha o rosto de uns rios , e a viu no roxo das ciladas . Ao criar títulos como Rútilo Nada . Ou ao falar de Um peixe raro de asas/ As águas altas/ Um aguado de malva/ Sonhando o Nada , em Da Morte. Odes Mínimas (Ed. Globo, 2001). E, no vertiginoso Cantares (Ed. Globo, 2001), ao descrever Um cemitério de pombas/ Sob as águas/ E águas-vivas na cinza.// Ósseas e lassas sobras/ Da minha e da tua vida .
Essas imagens rompem com o discursivo, com o prosaico. Seguem o pensamento analógico, a lógica do inconsciente que desconhece os princípios da identidade e não-contradição - O que restou de nós decifrado nos sonhos , como diz em Amavisse -, da alucinação e da loucura: estendi-me ao lado da loucura/ Porque quis ouvir o vermelho do bronze . Transportam seu leitor do 'real' imediato, empírico, para o mundo dos sonhos, alucinações, fantasias, em suma, da imaginação em sua plenitude.
Deixando-se de lado esses componentes do valor poético, interpretações filosófico-religiosas podem ser redutoras. Mas isso não impede a identificação, como o fiz no ensaio anterior, do Deus em passagens de Amavisse - como Que vertigem, Pai./ Pueril e devasso/ No furor da tua víscera/ Trituras a cada dia/ Meu exíguo espaço ou em Deus, um cavalo de ferro/ Colado á futilidade das alturas - a Ialdabaoth, o Demiurgo gnóstico.
Essa visão de Deus acentua-se, chega a um paroxismo, em outras das obras de Hilda, especialmente, de sua prosa, em A Obscena Senhora D (cito da edição Massao Ohno - Roswitha Kempf de 1982):
olha Hillé a face de Deus
onde onde?
olha o abismo e vê
eu vejo nada
E em Estar sendo, ter sido (Nankin, 1997), seu último livro, um vigoroso testamento literário: as coisas que o Criador faz. deve rir sem parar das coisas que constrói. [...] Aqui estou eu, eu Vittorio, Hillé, Bruma-Apolonio e outros. eu de novo escoiceando com ternura e assombro também Aquele: o Guardião do mundo .
São representações de Deus que correspondem àquela de Georges Bataille, autor lido por Hilda (citado em passagens de sua obra, inclusive em uma epígrafe de Amavisse ), em sua exacerbada crítica ao antropomorfismo e ao idealismo:
Deus saboreia-se, diz Eckhart. É possível, mas o que ele saboreia parece-me que é o ódio que ele tem de si mesmo, ao qual nenhum, cá na Terra, pode ser comparado [...] O que, no fundo, priva o homem de toda possibilidade de falar de Deus é que, no pensamento humano, Deus torna-se necessariamente conforme ao homem, na medida em que o homem é cansado, faminto de sono e de paz. [...] Deus não encontra repouso em nada e não se sacia com nada. Cada existência está ameaçada, já está no nada da Sua insaciabilidade. E assim como Ele não pode se acalmar, Deus não pode saber (o saber é repouso). [...] Ele só conhece o seu nada, e por isto Ele é, profundamente, ateu: Ele cessaria tão logo de ser deus (só haveria, no lugar da Sua horrível ausência, uma presença imbecil, abobalhada, se Ele se visse como tal) . (a citação é de Bataille, A experiência interior, Editora Ática, São Paulo, 1992).
Conforme observa Eliane Robert de Moraes, especialista em Bataille, em ensaio sobre Hilda Hilst (no Cadernos de Literatura Brasileira - Hilda Hilst do Instituto Moreira Salles): Não por acaso, o alvo primeiro dessa violência [contra o ideal, belo e inatingível] será o mesmo Deus que antes habitava a Idéia e sustentava a ilusão do Todo - esse equivalente algébrico e abstrato das vãs promessas de salvação . Ou, como resume Leo Gilson Ribeiro (também no Cadernos do IMS): Durante certo período de tempo, Deus lhe apareceu como o Baal de Brecht, monstruoso, sádico. |