É um Deus gnóstico. Os adeptos do gnosticismo não apenas atribuíram a criação e regência do mundo a um Demiurgo, "pequeno deus", de segunda ordem - nisso acompanhando Platão - mas descreveram esse cosmocrator, regente do mundo - chamado de Ialdabaoth, Samael ou Saclas - como cego, orgulhoso, arrogante, prepotente e obtuso. Conforme A realidade dos Governantes, uma das "escrituras gnósticas" da Antiguidade (publicada em As Escrituras Gnósticas de Bentley Layton, ed. Loyola, São Paulo, 2001):
Abrindo os olhos, ele [Ialdabaoth, engendrado pela fé e sabedoria, ou seja, Pistis Sophia] viu uma vasta quantidade de matéria sem limite; e ele se tornou arrogante, dizendo: "Eu é que sou deus, e não há nenhum além de mim." [...] Este governante, por ser andrógino, fez para si mesmo um vasto reino, uma extensão sem limite. E ele pensou em criar filhos para si mesmo, e criou para si mesmo sete filhos andróginos exatamente como o pai deles. E ele disse a seus filhos: 'Eu é que sou o deus da totalidade.
Para o historiador das religiões Henri-Georges Puech (autor de de En quête de la Gnose, Gallimard, 1978), gnosticismo é reflexão sobre o mal, buscando entendê-lo e descrever sua origem. Conferiu-lhe estatuto ontológico e dimensão cósmica:
O firmamento, os corpos celestes, especialmente os planetas que presidem ao Destino, à Fatalidade, são seres maus ou a sede de Entidades inferiores, tais como o Demiurgo e os anjos criadores, ou Dominadores demoníacos, com formas bestiais: os "Arcontes". Em uma palavra, o universo visível, de divino que era, torna-se diabólico. O homem nele sufoca, como em uma prisão, e, longe de ser manifestação do verdadeiro Deus, traz a marca de sua enfermidade ou de seu malefício congênito: nele não se reencontra nada, a não ser a mão de um Ser decaído ou perverso .
Jean Doresse, outro estudioso importante do gnosticismo, expõe a crença comum a uma diversidade de cultos gnósticos, ao que consta fundados por Simão o Mago, e que competiram com o cristianismo entre os séculos I e V d. C. (para em seguida reaparecerem como maniqueístas, bogomilos e cátaros):
[...] a Lei de Moisés é má, pois não havia sido o Deus supremo, porém certos anjos os que haviam criado o mundo inferior. São talvez essas mesmas doutrinas as que se ocultam no prólogo do Evangelho de João (o mesmo João cujo Apocalipse evidencia uma grande cólera contra as seitas), cujas definições refutam implicitamente, ponto por ponto, o ensinamento de que o mundo de modo algum é obra do Deus Supremo: a luz se viu atacada pelas trevas, o Logos não assumiu a carne mais que em aparência, vindo a este mundo só para certos eleitos ou privilegiados . (Doresse, La Gnosis , em Puech, Henri-Charles, org. Historia de las religiones, editora Siglo XXI, Madrid, 1979).
Conforme observou Octavio Paz em A dupla chama - Amor e Erotismo (Editora Siciliano, 1994), a propósito dos cátaros, gnósticos e maniqueístas tardios da Provença medieval, ... o dualismo é nossa resposta espontânea aos horrores e às injustiças da Terra. Deus não pode ser o criador de um mundo sujeito ao acidente, ao tempo, à dor e à morte; só um demônio pode ter criado uma terra manchada de sangue e regida pela injustiça .
Por isso, gnósticos certamente subscreveriam a visão de mundo expressa com veemência na Ode a Walt Whitman de García Lorca (transcrevo da Obra Poética Completa de García Lorca, tradução de William Agel de Melo, Martins Fontes - UEB, Brasília, 1989):
Agonia, agonia, sonho, fermento e sonho.
Este é o mundo, amigo, agonia, agonia.
Os mortos se decompõem sob o relógio das cidades,
a guerra passa chorando com um milhão de ratas grises,
os ricos dão a suas queridas
pequenos moribundos iluminados,
e a vida não é nobre, nem boa, nem sagrada.
Ou então, as referências ao mundo, ao corpo e a Deus em obras de Hilda Hilst como A Obscena Senhora D e Estar sendo, ter sido. Por exemplo, esta passagem de A Obscena Senhora D onde, assim como no gnosticismo e maniqueísmo, é admitida a autonomia do Mal:
de onde vem o Mal, senhor?
misterium iniquitatis, Senhora D, há milênios lutamos com a resposta, coexistem bons e maus, o corpo do Mal é separado do divino.
quem criou o corpo do Mal?
Senhora D, o Mal não foi criado, fez-se, arde como ferro em brasa, e quando quer esfria, é gelo, neve, tem muitas máscaras, por sinal, não gostaria de se desfazer das suas, e trazer a paz de volta à vizinhança?
Mas o gnosticismo não se resume à postulação de um mundo intrinsecamente mau, corrompido, por haver sido criado e por ser regido por um Deus mau. Nisso interagindo com o hermetismo de Alexandria, seu contemporâneo, gnosticismo é a doutrina religiosa do conhecimento. Layton, no já citado As Escrituras Gnósticas, identifica gnosis a um entendimento não-discursivo. Puech diz o mesmo (em En quête de la Gnose ):
Conhecimento ou reconhecimento de si, revelação de si mesmo a si mesmo, a gnose é, portanto, simultaneamente o conhecimento de todo o universo, visível e invisível, da estrutura e do devir do mundo divino assim como do mundo físico. [...] O conhecimento de si implica redenção de si, assim como aquele do universo implica os meios de se libertar do mundo e dominá-lo.
Esse especialista observa que gnosis é palavra transitiva, que supõe um genitivo. É sempre conhecimento de algo: daí o uso do termo pelo gnosticismo ser estranho. Sugere identidade com o divino, a esfera superior, os mistérios, e também consigo mesmo, com a própria alma, com a centelha de luz que permanece no ser humano:
O que é, com efeito, a gnose senão - como significa seu nome grego, gnosis - "conhecimento", ou seja, conhecimento no sentido absoluto do termo, ou, mais precisamente, um conhecimento que é, em primeiro lugar, conhecimento simultâneo e recíproco de si mesmo em Deus e de Deus em si mesmo, que permite àquele que possui esse conhecimento, o "gnóstico", salvar-se, assegurando-lhe que pode ser salvo, que o será e que inclusive já o é?
A perfeição gnóstica é uma reintegração, nisso assemelhando-se a doutrinas orientais; em primeira instância, ao budismo e hinduísmo. Trata-se de um conhecimento que não apenas eleva, mas salva, permitindo que o eleito venha a livrar-se deste mundo. Conforme o Zöstrianos, outra das 'escrituras gnósticas' (transcrito em As Escrituras Gnósticas de Layton), a pessoa que se salva é a que procura compreender e, assim, descobrir a si mesma e ao intelecto. Novamente citando Doresse (no já citado Historia de las religiones ):
Conhecer-se é, com efeito, reconhecer-se, reencontrar e recuperar o verdadeiro "eu", anteriormente obnubilado pela ignorância e pela inconsciência a que a fusão com o corpo e a matéria submete o homem: a gnosis é em realidade uma epignosis, um "reconhecimento", uma rememoração de si mesmo. '
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