Gnose é, por isso, um conhecimento que se confunde com seu objeto, como se as categorias do ser e conhecer fossem uma só. Isso fica claro através desta citação do Evangelho do Apóstolo Tomé (também em As Escrituras Gnósticas de Layton), expressão de um cristianismo oriental, herético e hermético, afim ao gnosticismo:
As pessoas não podem ver coisa alguma no reino real, a menos que se tornem essa mesma coisa. No reino da verdade, não é como os seres humanos no mundo, que vêem o sol sem ser o sol, e vêem o céu e a terra e assim por diante sem ser eles. Antes, se você viu qualquer coisa lá, você se tornou aquela coisa: se você viu o espírito, você se tornou o espírito; se você viu o ungido (Cristo), você se tornou o ungido (Cristo); se você viu o [pai, você] se tornará o pai. Assim, [aqui] (no mundo) você vê tudo e não [vê] a si mesmo. Mas lá, você vê a si mesmo; pois você se torna o que você vê. '
É possível observar, através dessas sinopses, uma diferença fundamental do gnosticismo com relação à doutrina cristã: a salvação não é mais conseqüência das ações e da fé, mas do conhecimento. E mais: a valorização gnóstica do conhecimento equivale a uma divergência frontal com a ortodoxia cristã, como argumenta outra importante estudiosa do assunto, Elaine Pagels (em As Origens de Satanás, Ediouro, Rio de Janeiro, 1996):
Os cristãos, diz Tertuliano, citando Paulo, deveriam, todos, falar e pensar as mesmas coisas. Quem quer que se afaste do consenso era, por definição, um herege, porque, como observa ele, a palavra grega traduzida como "heresia" (hairesis) significa literalmente "opção". Logo, o "herege" era um indivíduo que faz uma opção. [...] Tertuliano, porém, reafirma que fazer opções era um mal, porque elas destroem a unidade do grupo. A fim de erradicar a heresia, continua, os líderes da Igreja em hipótese alguma deviam permitir que as pessoas fizessem perguntas, porque as perguntas é que as tornam heréticas - acima de tudo, aquelas como as seguintes: de onde vem o mal? Por que o mal é permitido? Qual a origem dos seres humanos? Tertuliano quer colocar um ponto final nessas questões e impor a todos os crentes a mesma regula fidei, "regra da fé", ou crença. [...] O verdadeiro cristão, diz Tertuliano, apenas resolveu nada saber ... que divirja da fé. '
Em sua tentativa de superar a antinomia entre sujeito e objeto, no gnosticismo a iluminação coexistiu com a reflexão. Ligou-se, sob esse aspecto, à alquimia e ao hermetismo de Alexandria, do Corpus Hermetico, seu contemporâneo. Podem ser-lhe afins tendências modernas que propõe a síntese ou integração de várias modalidades de saber, a exemplo do holismo, do conhecimento amplo pregado por Edgard Morin. Gnose ainda equivale a um conhecimento secreto, iniciático, do âmbito dos eleitos: os descendentes de Set, o terceiro filho de Adão, que detêm o constato com o Espírito. Distinguem-se dos psíquicos ou crentes , que podem ter acesso à gnose através do aprendizado e disciplina, ou seja, de uma iniciação, e dos somáticos ou hílicos , alheios à dimensão espiritual. Possivelmente, a vertente esotérica, secreta, do gnosticismo, influenciada pelo cristianismo oriental dos seguidores dos evangelhos atribuídos a Tomé, acentuou-se à medida que foi sendo pressionado e combatido pelo cristianismo ortodoxo, transformado em religião oficial e imperial no século IV d. C.
O dualismo gnóstico teve conseqüências importantes. No plano moral e teológico, equivale à exoneração ou dissociação da culpa, pois suprime o pecado original. Conforme sintetiza Elaine Pagels (em Os Evangelhos Gnósticos, publicado no Brasil pela ed. Cultrix) , para os gnósticos a ignorância, e não o pecado é o que causa o sofrimento das pessoas. A expulsão do Paraíso, com a perda da inocência original, não é conseqüência do erro de Adão e Eva, porém do próprio Criador. A Queda é um acidente cósmico, momento de um drama teológico. O ser humano passa de culpado a vítima: em algumas versões, textualmente, é a vítima de um estupro divino. Em uma variante da violação de mulheres por anjos relatada em Gênesis 6, Eva teria sido violada por Ialdabaoth e outros arcontes.
Nesse aspecto, gnose não se diferencia apenas do cristianismo, mas também da mitologia e filosofia clássicas da Grécia, ao atribuírem a culpa, associada a uma ruptura da lei, da ordem divina, ao ser humano. Movido pela hybris, a falta de medida, sujeitava-se à punição e conseqüente expiação. Esse foi, inclusive, o cerne de tragédias gregas, de Ésquilo a Sófocles.
Daí a crítica ao gnosticismo por Plotino e Porfírio, entre outros neo-platônicos. Onde em Platão há um Bem transcendente e, no Timeu, um demiurgo racional, que atua como mediador e vai preencher, utilizando-se da geometria, a distância entre as formas inteligíveis e as coisas sensíveis, na gnose o mal é cósmico. A visão de mundo grega, ou greco-romana, pois, conforme Virgílio, Joves omnia plena, é invertida, como resume Puech: O grego diz: "Deus é o mundo", ligando indissoluvelmente os dois termos; o gnóstico dirá: "Deus ou o mundo", dissociando os dois termos, que representam para ele duas realidades heterogêneas, independentes, irreconciliáveis. A ação providencial de Deus não consistirá mais na manutenção e execução das leis cosmológicas; ela intervirá, ao contrário, para contradizer e romper essas leis. (a citação também é de En quête de la Gnose )
Por isso, concepções gnósticas também se distinguem daquelas presentes no pensamento hermético como um todo, e do florescimento de uma filosofia neo-platônica cujo centro irradiador foi Alexandria. Daí a advertência de Doresse sobre [...] o abismo que em outro tempo havia separado o gnosticismo dualista das grandes seitas de "gnoses" otimistas, como a do hermetismo filosófico ou a de determinadas interpretações platônicas do cristianismo. ( Doresse, La Gnosis , em Puech, no já citado Historia de las Religiones ). |