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OS LIVROS DA WALKYRIA
JÚLIO VERNE
VINTE MIL LÉGUAS SUBMARINAS

CAPITULO XIX:
As Últimas Palavras Do Capitão Nemo


Às onze horas voltou a iluminação elétrica. Verifiquei vários instrumentos. O Nautilus seguia para o norte a uma velocidade de vinte e cinco milhas por hora, às vezes à superfície da água e, em outras, a trinta pés abaixo desta.

Feita a devida verificação sobre o mapa, constatei que atravessávamos a entrada do canal da Mancha, caminhando a toda velocidade para os mares boreais.

Daquele dia em diante, quem seria capaz de nos dizer até onde nos arrastara o Nautilus no vale do Atlântico setentrional, navegando sempre a grande velocidade e entre névoas setentrionais? Não podia precisar qual o tempo transcorrido, porque os relógios a bordo estavam parados.

Não tornamos a ver o capitão Nemo e seu imediato, bem como nenhum de seus tripulantes. O Nautilus navegava quase sem parar, e quando subia à superfície, a fim de renovar o ar, as escotilhas se abriam e se fechavam automaticamente. Não se marcava mais a posição no planisfério. Ninguém sabia onde estávamos.

Ned Land, esgotadas as suas energias e sua paciência, não aparecia. Eu temia que, levado por um acesso de cólera e pela nostalgia, tentasse pôr fim à vida.

Nas primeiras horas da manhã, cuja data não pude determinar, estava mergulhado em um torpor anormal, quando, ao acordar,vi Ned Land, que inclinado sobre mim me dizia em voz baixa:

- Prepare-se para fugir!

- Quando? - perguntei, endireitando o corpo rapidamente.

- Esta noite. Parece que não há guarda no Nautilus. Está disposto?

- Sim. Quando nos encontraremos?

- Quando surgir a terra firme vinte milhas a leste.

- Mas que terra é essa?

- Não sei, mas seja qual for, refugiaremo-nos nela.

- Sim, Ned. Fugiremos esta noite, mesmo que tenhamos de ser tragados pelo mar.

- De fato, o mar está muito ruim e o vento forte; porém, não me assustam vinte milhas em um barco leve como o do Nautilus. Já reservei alguns víveres e algumas garrafas de água.

- Eu o seguirei, amigo Ned.

Como me pareceu longo o dia, o último que iria passar a bordo do Nautilus!

Estava decidido a tudo.

Às seis e meia, entrou Ned em meu camarote para dizer-me:

- Não nos veremos até a nossa partida. Às dez horas, as brumas espessas ainda permanecem e aproveitaremos a escuridão. Vá para o barco. Ali estarei com Conselho esperando-o.

Eram nove e meia. Teria que esperar ainda meia hora!

Naquele momento, soaram acordes do órgão, harmonia triste sobre tema indefinível, verdadeiros lamentos de alma que quer quebrar os vínculos terrestres. Escutei elevado, apenas respirando, mergulhado como o capitão Nemo num daqueles êxtases musicais que o arrastavam para fora dos limites do mundo.

Depois, um pensamento repentino, aterrou-me. O capitão Nemo abandonara o quarto. Estava no salão que eu deveria atravessar para fugir. Ali iria encontra-lo pela última vez. Ele me veria, talvez falasse comigo!

Um gesto seu poderia aniquilar-me, uma única palavra pôr-me a ferros.

Entretanto, iam soar dez horas. Chegara o momento de abandonar meu quarto e reunir-me a meus companheiros. Não poderia hesitar, ainda que o capitão Nemo se erguesse diante de mim. Abri a porta com precaução e pareceu-me ouvir um ruído espantoso. Talvez tal ruído só existisse em minha imaginação.

Avancei, rastejando, através dos passadiços sombrios do Nautilus, parando a cada passo para comprimir as violentas batidas do meu coração. Alcancei a porta angular do salão. Abri-a delicadamente. O salão estava envolto na mais profunda escuridão. Os acordes do órgão ressoavam fracamente. O capitão Nemo estava lá, mas não me via. Creio mesmo que em plena luz me teria visto, tanto o seu êxtase o absorvia.

Arrastei-me pelo tapete, evitando o menor rumor. Foram precisos cinco minutos para chegar à porta do fundo que desembocava na biblioteca. Ia abri-la, quando um suspiro do capitão Nemo imobilizou-me. Compreendi que se levantava. Quase cheguei a vê-lo porque alguns raios luminosos filtravam da biblioteca para o salão. Dirigiu-se a mim, braços cruzados, silenciosos, mais deslizando do que andando, como espectro. O peito opresso, cheio de soluços. E ouvi-o murmurar estas palavras, as últimas que escutei de sua boca:

- Deus Todo-Poderoso! Basta! Basta!

Seria a confissão do remorso, que assim escapava de sua consciência?

Desvairado, precipitei-me na biblioteca. Subi a escada central e, seguindo o passadiço superior, alcancei o escaler. Nele penetrei pela abertura que já havia dado passagem a meus dois companheiros.

- Partamos, partamos! - exclamei.

- Imediatamente - respondeu o canadense.

De repente ouvimos rumores surdos no interior do submarino, misturados com palavras ríspidas. O que estaria acontecendo? Teriam percebido a nossa fuga? Ned Land entregou-me o punhal.

- Sim - disse-lhes -, saberemos morrer.

O canadense interrompeu a sua tarefa. Porém, uma palavra repetida vinte vezes, uma palavra terrível, revelou-me o motivo daquela agitação que se espalhara a bordo. Não era por nossa causa.

- Maelstrom, Maelstrom - gritavam os marinheiros.

Estávamos, pois, nas perigosas paragens da Noruega, o Nautilus tinha sido arrastado àquela voragem no mesmo instante em que íamos arriar o barco.

É fato que na ocasião da preamar, as águas comprimidas entre as ilhas Feroe e Lofoden adquirem uma violência intensa, formando um torvelinho, do qual nunca escapou navio algum.

Ali foi o local onde o capitão Nemo colocara seu navio voluntária ou involuntariamente. O Nautilus descrevia uma espiral, cujos raios iam diminuindo aos poucos, arrastando consigo o bote, ainda preso a seu costado.

Que situação embaraçosa! A agitação era terrível. O Nautilus se defendia como um ser humano. De vez em quando se levantava verticalmente, derrubando a tripulação.

Minha cabeça foi bater contra um pilar de ferro e a violência do golpe fez-me perder os sentidos.